Trata-se da história de um homem que perde a memória e aparece perdido numa fazenda na cidade de São Roque de Minas, Serra da Canastra.
parte 1
V
Enquanto João e Feliciana esperavam ansiosos
pela chegada da filha e por notícias do empregado desaparecido, José saía
pensativo da mata fechada de onde recebera a emblemática missão de fazer seu
patrão perdoar o avô pelos crimes e atrocidades cometidos no passado.
Já na estrada de volta à fazenda, José Vazio
caminhava cabisbaixo, esquivando-se da poeira e procurando lembranças junto ao
cascalho. Mais adiante, um carro passa em disparada, mas logo volta em marcha à
ré, parando bem ao lado do caminhante de passado perdido. “Aceita uma carona?”,
pergunta uma mulher sentada no banco do carona.
Não era final de semana, muito menos feriado
prolongado, mas na capital das Gerais, o médico Elias Xavier, após receber o
telefonema de uma amiga, cancela todas as suas consultas do dia e parte
apressado rumo à Canastra, acompanhado da mesma amiga que lhe telefonara.
Na cozinha da fazenda, enquanto Feliciana
alimentava a quentura do fogão de lenha, seu João, sentado à taipa, pitava seu
paieiro e conversava com a companheira: “e nossa fia que num
chega, muié! E o Zé que num aparece logo! Ô meu
Deus! Que gastura!” Feliciana, com a sabedoria de sempre, tentava alentar o
marido: “se acalma, meu velho! Você tá angustiado à toa. Nossa filha disse que
só chegaria no final da tarde.” “Mas e o Zé, Feliciana? O homi tá
sumido desde cedo”, fala João Clemente num desassossego só. Mais uma vez a
companheira emenda: “João, desse jeito ocê vai acabá enfartano. O Zé tá
sem memória, mas não tá bobo, uai. Ele conhece bem as
bandas por aqui. Tenho certeza de que, quando ocê menos esperá,
ele aparece. E sai de cima do meu fogão com esse pito fedorento e vai lá fora tratá
‘das galinha’!”, diz Feliciana.
Mal João Clemente sai da casa para tratar das
galinhas, avista Argemiro correndo e acompanhando o carro que atravessava o
terreiro. Era Ana, a filha mais velha dos Clemente. “Ana, minha fia!
Graças a Deus! O pai num tava mais aguentano tanta saudade”
confessa João com os olhos marejados. Ao escutar o marido, Feliciana larga as
panelas, arranca o avental e corre para abraçar a filha junto ao marido. A
cadelinha Filó, sombra fiel de Feliciana, contemplava a cena do reencontro,
equilibrando-se no murinho entre as orquídeas coloridas.
Mas Ana não viera sozinha. Em pé, aguardando o
abraço da família quase completa, estava George, capitão do Exército, que
conhecera Ana durante a missão no Haiti. Findo o caloroso abraço, Ana puxa
George pela mão e o apresenta aos pais: “este é o capitão George Cardoso, meu
noivo”. Seu João, diante da mão estendida de George, puxa o rapaz ao seu
encontro, dá-lhe um forte abraço e lhe diz ao pé do ouvido: “vê se cuida bem da
minha Ana, hein, capitão!? Senão eu mato ocê!” George, não sabendo se o
futuro sogro brincava ou não, sorrira desconcertado. E antes mesmo que João
terminasse de abraçar o capitão, seus olhos avistaram José Vazio, parado feito
um moirão de cerca, ao lado do carro de George. “Mas onde é que ocê
tava excomungado?”, pergunta o fazendeiro ao rever o empregado. “Ah! Eu
já tava
me esquecendo de falar, meu pai. Encontramos o seu José na estrada e
resolvemos lhe dar uma carona”, disse Ana.
Após os cumprimentos e as surpresas, Feliciana
anuncia que vai servir um café. O fazendeiro, extremamente feliz pelo
reencontro com a filha e o retorno de José, conduz os convidados à copa, onde
uma mesa farta estava posta, aguardando a todos. Depois de indicar o lugar de
cada um à mesa, inclusive de José e Argemiro, João Clemente pede à esposa que
faça uma breve oração em ação de graças pelo saudoso momento.
Enquanto o café da tarde se estendia noite
adentro, José procurava uma oportunidade para conversar com o patrão.
Feliciana, sempre muito atenciosa, pergunta ao empregado o motivo de tanto
desassossego. “É apenas cansaço, dona Feliciana”, argumenta José tentando
justificar sua impaciência. “O senhor José lembra muito meu bisavô. Não é, meu
pai?”, pergunta Ana. “Eu, particularmente, acho que ele lembra mais a imagem de
São José que tenho lá na sala”, comenta Feliciana. Aproveitando a oportunidade,
José toma coragem e pergunta ao patrão: “Por que o senhor usa apenas o
sobrenome da sua mãe, seu João?” Naquele momento, um pesado silêncio paira no
ar. Todos pareciam petrificados. Ninguém se encorajava comentar alguma coisa
até que... “Alguém aceita mais pão de queijo?”, pergunta dona Feliciana, mais
uma vez, tentando amenizar. “Eu aceito, minha mãe.”, responde Ana entendendo a
intenção da mãe. “Então vamos à cozinha comigo, minha filha. Enquanto você tira
o pão de queijo do forno, eu vou passando mais um café. E você, Argemiro, leva
o George pra dar uma volta pela fazenda”, encomenda Feliciana.
Aquele momento parecia ideal para que José Vazio
começasse a cumprir sua missão. Num golpe de sorte, arrisca perguntar: “o
senhor não gosta de falar nisso, não é seu João?” João responde
monossilabicamente: “Não”. “O senhor acredita em assombração?”, diz José Vazio?
“Ocê
tá doido? Essas coisas não existem", diz João. “Eu também não
acreditava, Seu João. Mas, hoje, caminhando pela mata, encontrei uma mulher que
falava sem mexê a boca. “Como assim, Zé?”, questiona João. “Isso mesmo,
seu João. Eu ouvia a voz dela, mas a boca não mexia. Ela disse que o senhor
precisava perdoar o seu avô. O senhor guarda alguma mágoa dele, seu João?” João
Clemente, intrigado com a prosa de José Vazio, resolve falar um pouco mais
sobre a história do seu avô: “o meu avô foi um homem muito mau, Zé.
Usava do poder que tinha pra conseguir tudo aquilo que queria. Pra falar a
verdade, ele tinha até fama de matador”. “Será que o senhor poderia me mostrar
alguma foto dele?”, pergunta José. “Claro que pode. Não é meu velho?”,
interrompe Feliciana já entrando na sala de jantar com um velho álbum de
fotografias nas mãos. João não teve reação.
Enquanto José folheava o álbum, Feliciana
contava-lhe um pouco da sua história. Falava com alegria dos tempos de
magistério, em que lecionava na escola em que o pai de João Clemente construíra
na fazenda e de quando conhecera João há tempos atrás: “lembro, como se fosse
hoje... “Nossa Senhora da Cabeça! Quem é essa mulher que tá aqui no foto?”,
pergunta José Vazio interrompendo a fala de Feliciana. João Clemente,
cabisbaixo, nem se dá ao trabalho de olhar para a foto em questão. “Esta é a
avó do João...” “Amanacy?”, pergunta José interrompendo mais uma vez dona
Feliciana. “Mas como é que ocê sabe o nome da minha avó, Zé Vazio?”
, pergunta João Clemente. “Eu sei porque ela me falô. A mulher da foto é
a mesma que conversou comigo lá na mata”, responde José Vazio.
VI
“Mas como é que ocê sabe o nome da minha
avó? Quem é que falô isso procê?”, pergunta João. “O senhor
precisa acreditar em mim. Eu só quero ajudá. Não tenho culpa dessa índia tê
aparecido pra mim... Mas uma coisa é verdade: essa mágoa que o senhor sente do
seu avô, só faz mal prô senhor. Todo mundo tem um lado bão. Já pensou nisso?”,
diz José Vazio tentando amolecer o patrão. “O Zé tá certo, João. A
mágoa é água podre que fica parada dentro da gente. Ocê precisa perdoá
o seu avô. É prô seu bem, homem teimoso!”, diz
Feliciana tentando amenizar, mais uma vez. “A mãe tem razão, meu pai. O senhor
não pode passar o resto da vida remoendo essa historia. Já passou muito tempo.
O seu José não apareceu aqui por acaso. A missão dele é essa: amolecer esse
coração”, diz Ana. E José completa: “A sua filha tem razão. Eu não sei quem foi
que falou tudo isso pra ela, mas foi exatamente o que a índia me disse, que a
minha missão era fazer o senhor perdoar o seu avô.”
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marcos
pamnela