Trata-se da história de um homem que perde a memória e aparece perdido numa fazenda na cidade de São Roque de Minas, Serra da Canastra.
O final de semana prolongando se vai e, com ele,
Elias retorna à capital, levando na bagagem um punhado de dúvidas. José Vazio
volta à sua rotina, mais tranqüilo e esperançoso, depois que os remédios
começaram a fazer efeito. João e Feliciana Clemente contavam os dias aguardando
a retorno da filha Ana, que estava no Haiti há quase quatro anos, trabalhando
numa missão do exército. Era médica. E, para que a alegria do casal fosse
completa, faltaria apenas receber as mesmas notícias do filho, Frederico, que
há dez anos estava na Itália, trabalhando como fotógrafo, e há cinco sem ver os
pais, comunicando-se apenas por telefone.
Uma semana se passara e dona Feliciana e seu
João aguardavam ansiosos pela chegada da filha. Mas não foram notícias de Ana
que chegaram à fazenda dos Clemente. Passava-se das duas da tarde quando
Argemiro, o empregado mais antigo da fazenda, chega correndo e bufando à
varanda e anuncia: “o Zé Vazio se escafedeu, seu Jão!
Sumiu mêmo!
IV
João Clemente custava a acreditar que perdera
José Vazio de vista, mesmo depois de tanto esforço e dedicação para amenizar um
pouco das suas angustias. “Ele num podia te feito isso”, lamentava o fazendeiro. Argemiro, com um riso encantoado,
palpitava: “vai vê se alembrô
darguma
coisa e aluiu por aí”. “Por acaso ocê tá invurvido nesse sumiço, Gimiru?”,
suspeita o patrão. “Pelamor de Deus, seu Jão.
Num fala um ‘trem’ desse. Eu só tava comentanu,
uai”, defende-se o caseiro. “Acho
muito bão. Viu?”, diz João
Clemente.
Horas antes, enquanto aguardava o caminhão de
Pedro Matias, José Vazio, com um olhar de paisagem, matutava sobre as palavras
do médico: “sua memória não está morta;
está perdida...”. “Onde é que a minha memória teria se perdido? De onde eu
vim para ter chegado justamente aqui, na fazenda dos Clemente?”, perguntava-se
José. Seus questionamentos começavam a fazer sentido. Talvez já fosse mérito dos
remédios prescritos por Elias Xavier que começavam a fazer efeito.
Logo que o caminhão vermelho estaciona, José
Vazio acomoda os latões de leite na carroceria e se apóia à porta do
passageiro: “Bom dia, seu Pedro! Será que a gente pode conversar um pouquinho?
Eu queria fazer umas perguntas ao senhor.” Pedro Matias, sempre apressado,
responde: “claro que sim. Eu só preciso terminar a linha. Mas o senhor pode vir
comigo e a gente vai conversando. O que acha?” José vai abrindo a porta do
caminhão e falando: “acho muito bom, seu Pedro!”
E assim, enquanto fazia a linha, seu Pedro, sem
querer, clareava as ideias de José Vazio: “estou vendo que o senhor está muito
bem. Desculpe, mas qual é mesmo o seu nome? “Chamam-me de José”, responde o
carona. “Ah, sim, seu José. Lembro-me, como se fosse hoje, do senhor pedindo
carona na beira da estrada, todo machucado e com a roupa toda suja de barro.
Não vou mentir que fiquei com medo de parar o caminhão, porque, como o senhor
sabe, o número de assaltos vem aumentando muito por aqui, principalmente agora,
em época de panha. Mas algo maior me incentivou a lhe dar carona”. José,
boquiaberto com tanta informação, acrescenta: “Não sei se o senhor sabe, seu
Pedro, mas eu cheguei sem memória na fazenda dos Clemente.” “Sem memória?
‘Nossa Senhora da Cabeça’!”, lamenta seu Pedro, enquanto dirigia o caminhão
pela estrada de chão batido.
“O senhor se lembra do local exato onde me
encontrou?”, pergunta José. Percebendo o desassossego do passageiro, Pedro
Matias logo relata: “eu vinha pela rodovia e, assim que embiquei o caminhão no
sentido à São Roque, encontrei o senhor encostado num moirão de cerca pedindo
carona. Aí, outro caroneiro que vinha comigo, ajudou o senhor a subir na
carroceria e seguimos cortando a poeira. Mas assim que parei pra recolher o
leite da fazenda do seu João Clemente, o senhor apiô desembestado
porteira a dentro, como se já conhecesse o lugar”.
Já no caminho de volta, próximo a fazenda dos
Clemente, Pedro Matias reduz o caminhão com o intuito de deixar José próximo à
porteira, mas antes mesmo de parar, o caroneiro lhe faz um pedido: “será que o
senhor poderia me deixar no lugar onde me viu pela primeira vez?” Acelerando
novamente, Pedro responde: “claro, seu José.” Antes de sair da estrada de chão
para ganhar a rodovia, o caminhão para e José, um pouco menos Vazio, despede-se
agradecido e emocionado: “obrigado pela viagem ao passado, seu Pedro.”
De posse dos novos retalhos de sua história,
José Vazio, adentra a mata cortada pelas águas do São Francisco. Caminha horas
com um canivete nas mãos, cortando o mato que lhe arranhava os braços e o
rosto. Colhia frutas que apareciam pelo caminho. Contemplava todo aquele quadro
pintado em vários tons de verde, sempre procurando algo que lhe soasse
familiar. Logo adiante, à sombra de uma árvore centenária, faz uma parada, a
fim de descansar da longa caminhada e para comer as frutas que encontrara.
Porém, vencido pelo cansaço e embalado pela brisa tropical, adormece encostado
no tronco da árvore.
Algum tempo depois, vê-se frente a frente com
uma jovem senhora, com traços indígenas, que sorrindo lhe diz: “como você
demorou a voltar”. Esfregando os olhos para se certificar de que não se tratava
de um sonho, José pergunta àquela mulher misteriosa: “voltar? Mas voltar de
onde? Quem é a senhora?” “Calma! Vejo que sua memória está fraca e confusa. Não
se lembra mesmo de mim?” José responde negativamente com um movimento de
cabeça.
Aquilo era mesmo surreal. José ouvia a voz da
mulher, mas as palavras não vinham de seus lábios, pois não se mexiam.
“Preocupa-se demais com o seu passado quando, na verdade, deveria pensar mais
no seu presente. Não foi à toa que você foi parar na fazenda dos Clemente. Tudo
tem um porquê. Na verdade, você tem uma missão a cumprir: fazer o fazendeiro
João Lopes perdoar o seu avô, Aureliano Lopes, por todos os crimes que cometera
no passado”.
Atordoado, José questiona: “mas eu não conheço
nenhum João Lopes”. “Conheces muito bem. Ele é o seu patrão. João Clemente, na
verdade, nascera João Clemente Lopes, filho de Jerônimo Lopes que, por sua vez,
era filho de Aureliano Lopes, um dos homens mais ricos dessas bandas que
morrera assassinado com uma lança espetada no olho direito” relatou a mulher
misteriosa. “Mas por que seu João teria de perdoar o avô?”, diz José com um
arrepio na espinha. “Além de ter se enriquecido misteriosamente, carregava nas
costas uma coleção de mortes. Tinha fama de matador. Ninguém se encorajava a
desafiar Aureliano Lopes, o coronel, como era conhecido. Tenho certeza de que
se arrependera de todo o mal que fizera e que está pagando por isso até hoje.
Mas, mesmo assim, necessita do perdão do neto. A felicidade dos descendentes do
seu patrão depende muito desse perdão, bem como o retorno da sua memória, José
Vazio. Não é assim que lhe chamam agora? Lembre-se que cada pessoa carrega
consigo uma missão. Todos têm uma a cumprir”, responde a índia com os lábios
cerrados.
José, como se tentasse fugir de uma assombração,
vira-se de costas para a mulher e, tremendo de medo pergunta: “Mas como vou convencer
seu João a perdoar o avô? E o seu nome, você não vai me dizer?” E antes de
desaparecer misteriosamente, a índia responde: “A minha missão era esta:
passar-lhe a sua missão. Agora, a forma como irá cumpri-la, isso é com você,
José. Ah, antes que eu me esqueça, meu nome é Amanacy”.
Sem saber ao certo se tudo fora sonho ou
realidade, José Vazio se recupera do susto e retorna à fazenda dos Clemente
para cumprir a sua missão: salvar a nova geração dos Lopes, através do perdão
de João Clemente, e recuperar sua memória perdida.
Comentários
realmente vc sabe levar a história,
e assino em baixo o que a kedma falou, se tivesse livro eu comprava...
pamela
Saúde e Paz, minha cara leitora!