Trata-se da história de um homem que perde a memória e aparece perdido numa fazenda na cidade de São Roque de Minas, Serra da Canastra.
parte 1
Parecia que aquela ladainha toda atravessaria
madrugada adentro. Mas de repente, levanta-se João Clemente e diz: “vamo
durmi, minha gente? Amanhã temo muita coisa pra fazê.
Num
é Zé?
Então, cê vai dormí que amanhã a gente termina
essa prosa. Certo?” “Claro, seu João. Daqui a pouco eu já tenho que tirar o
leite. Boa noite prá todo mundo! Dorme com Deus, oceis tudo!” “E ocê
com Ele, Zé!”, responde Feliciana.
Assim que todos se deitaram, o silêncio tomou
conta da fazenda. Ninguém pregava os olhos. Ninguém conversava. João Clemente,
com os olhos açudados, olhava fixamente para o Cristo na parede, enquanto
Feliciana dedilhava as pedras do rosário. O quarto parecia rodeado de anjos.
João sentia que alguém lhe afagava os cabelos. As lágrimas começavam a deslizar
pelo seu rosto, como chuva mole descendo a ladeira da Serra. Imaginando ser
Feliciana a dona dos carinhos, virou-se para o lado da companheira, mas, para
sua surpresa, ela havia adormecido. Nesse momento, João soluçava feito uma
criança e repetia: “eu te perdoo, vô! Eu te perdoo!” Escutando o choro
do marido, Feliciana desperta, abraça o companheiro e diz: “se acalma, meu
velho! Vamo rezá um terço comigo...”
Depois de uma noite quase interminável, o sol se
apresenta e colore o dia de luz. Os passarinhos cantavam intrépidos por toda
parte. No terreiro, Geremias esparramava o café avermelhado, acompanhado pelo
gato Tiburço, e pela cadelinha Filó. Na cozinha, João, sentado à taipa, tomava
seu leite com conhaque, enquanto Feliciana coava o café no coador de pano.
De cócoras, junto ao moirão da porteira, José
Vazio aguardava o caminhão vermelho de Pedro Matias e o retorno das lembranças
perdidas. Tudo parecia se repetir. No horário de costume, o caminhão chega,
José acomoda os latões de leite na carroceria, dá dois tapas na porta do
passageiro, cumprimenta o amigo, e seu Pedro segue a linha pela estrada de chão
e pó. Depois que a poeira se assenta, como de costume, José fica alguns minutos
com seu olhar de paisagem, observando o horizonte emparedado, até que um som
familiar quebra a rotina daquele silêncio cinza: “Pai!?”, grita uma voz de
mulher. “Lívia!?”, responde, José, antes cair desmaiado, como no dia em que
chegara à fazenda.
“Mas como
eu procurei o senhor, Pai!” dizia Lívia, filha única de José Vazio, ou melhor,
de Francisco, enquanto ajudava o pai a se levantar depois do desmaio. Francisco
Lopes era filho de Juventino Lopes, irmão de Aureliano Lopes. Depois de um
abraço demorado, Francisco diz emocionado: “Filha, você tá linda! Tá meio
magrinha, né?! Não te vejo assim, tão magra, desde a morte da sua mãe.
Mas o que aconteceu? Por que você emagreceu tanto?” “Mas que pergunta! Faz dois
anos que o senhor desapareceu. Eu achei que tinha ficado órfã de vez. Por que o
senhor veio pra cá, na Serra da Canastra?”, pergunta Lívia. “Nossa! dois anos?
Parece que foi ontem... Eu tinha resolvido vir pra São Roque visitar uns
parentes, mas, no caminho, tinha um carro quebrado no acostamento e um homem
pedindo socorro. Então, parei o carro, desci e fui em direção dele. Mas alguma
coisa acertou minha cabeça e... não me lembro de mais nada”, relata Francisco.
“E esse tapa-olho?”, pergunta Lívia. “Ah, o tapa-olho? É que eu não enxergo
mais desse olho”, apontava Francisco, para o seu olho direito. E, percebendo
que a visão havia voltado, alegra-se: “Nossa! Meu olho direito voltou!”,
constata Francisco, retirando o tapa-olho. “Eu não disse que era psicológico!”,
fala Elias Xavier, interrompendo a conversa de pai e filha. “Doutor Elias?” diz
Francisco. “O Elias me trouxe até aqui, pai. Ele é um grande amigo! Após uma
viagem prá cá, ele me contou sobre um homem sem memória que havia conhecido.
Depois disso, eu tive um sonho estranho com uma índia...” Nesse momento, o pai
interrompe a filha: “ela falava sem mexer os lábios e contou pra você que eu
estava aqui. Foi isso?” “Credo! Foi isso mesmo.”, responde Lívia. “Eu também
sonhei com ela, filha. Pra falar a verdade, eu acho até que me encontrei
realmente com ela”, continua o pai...
Dona Feliciana já anunciava o almoço quando
Francisco, Lívia e Elias chegam à fazenda: “ô de casa!”, chama Elias Xavier à
porta. “Mas olha quem tá aqui de novo!” responde João Clemente. “E essa moça
bonita, abraçada com ocê, Zé Vazio, quem é?”
pergunta João. “É a Lívia, seu João. Ela é minha filha. “Filha? Mas como
assim?” , questiona João. “O Zé
não é mais Vazio, meu amigo. A memória dele voltou!” , justifica Elias. “É isso
mesmo, seu João. Meu nome é Francisco. Sou filho do Juventino Lopes, irmão do
seu avô, Aureliano Lopes. Meu pai foi embora daqui depois que vendeu suas
terras pro seu avô e foi para a capital, onde fez a vida, conheceu minha mãe e
onde eu nasci. Lá, em Belo Horizonte, enriqueceu fazendo móveis de madeira. E eu,
aprendi tudo com ele. Um pouco antes de morrer, meu pai me contou sobre a
história dele na Canastra. Falou sobre o irmão, Aureliano, e sobre as belezas
das bandas de cá. E por falar em Aureliano, tô vendo que o senhor
perdoou o seu avô. Não é?” , constata Francisco com um largo sorriso. “Mas como
é que ocê sabe disso?” , pergunta João. “É simples: minha memória
voltou!” , responde Francisco.
Como as nascentes chegam ao São Francisco e ele
ao mar, os dias se cumprem. O tempo passa apressado. A vida segue. E, para a
alegria da família Clemente Lopes, Frederico volta ao Brasil e vai para São
Paulo, trabalhar como fotógrafo. Ana, a filha mais velha, casa-se com George
Cardoso e se muda para Lavras, onde nasce o primeiro filho do casal, João
Clemente Lopes Neto. Francisco, o enigmático José Vazio, compra as terras de
Elias Xavier e passa a vizinhar com João, seu amigo, antigo patrão e, agora,
primo. Argemiro, empregado mais antigo da fazenda, pede contas e desaparece no
pó da estrada, depois que seu patrão acolhera um andarilho em sua casa, vulgo
Ubirajara, de descendência indígena. Porém, Feliciana, que sempre fora uma
mulher caridosa e nunca medira esforços para ajudar a quem precisasse, sentia
que havia algo de errado com aquele homem. Mas essa já é outra história...
FIM
Comentários
agora sim...
luciano, vou lhe contar...!! adorei sua história, estava ansiosa demaias para ver o fim e pôxa vida.. como gostei... vou ler novamente.. agora, toda a história completa..
Gostei muito da ideia de ver publicado assim por partes... dá um nervoso para ver a continuação..rsss
muito bom!!! parabéns.. terá mais?
pamela
Essa história mesmo foi enviada também em partes ao jornal e o pessoal ficava assim, também: ansioso. É bom ter o reconhecimento de um trabalho feito com amor. Obrigado
Abraço
Luciano Marques
estava seguindo e curti bastante o fim.... boa ideia...
foi bom ter voltado do hospital e encontrar o fim do texto. gostei gente.
marcos soares
parabéns ao autor.
jordelino