Trata-se da história de um homem que perde a memória e aparece perdido numa fazenda na cidade de São Roque de Minas, Serra da Canastra.
III
Ninguém poderia negar: Elias ficara paralisado
após bater os olhos naquele homem que acompanhava seu vizinho e amigo João
Clemente. “Já vi este homem. Mas onde?”, pensa Elias. Tenta buscar na memória
algo que justificasse aquela sensação de déjà vu. Pensa nas fotos de pessoas
desaparecidas estampadas nas contas de luz... Talvez um dos seus pacientes da
capital... Quem sabe?! Aquilo nunca lhe acontecera antes: ficar paralisado
diante de um paciente. O fato é que, com certeza, Elias teria visto José Vazio
em algum lugar, mas nada o fazia lembrar onde.
Contudo, sua impressão não poderia, naquele momento, ser relatada – ainda que
não pudesse esconder sua palidez ao ficar de frente com aquele homem enigmático
-, uma vez que não tivesse certeza de nada, poderia complicar ainda mais a
situação do desmemoriado. Mas, João, astuto como tal, percebera o desconcerto
do amigo.
Recuperado do susto e de posse do seu
estetoscópio, Elias passa a examinar José minuciosamente, da forma como sempre
fez com todos seus pacientes na capital. Nada passava despercebido naquele pente fino: coração, pulmão, pressão
arterial, reflexos vitais, manchas, micoses, cicatrizes e possíveis sinais de
desgaste da pele que denunciassem a idade real daquele homem misterioso e
calado. Sobre o olho direito de José, o médico não vira nada de errado,
aparentemente. Porém, a título de sugestão, aconselhou que procurasse um médico
oftalmologista para exames mais detalhados. Entretanto, com base na experiência
que tivera em casos de amnésia, cogitou a possibilidade de um trauma
psicológico. “Talvez, a perda da memória possa ter afetado, ainda, algum dos
sentidos. No seu caso, seu José, a visão”, explica Elias. Enquanto o exame era
feito, João Clemente tentava organizar suas suspeitas acerca do acontecido bem
ali, diante de suas vistas. Nada lhe tirava da cabeça que Elias já conhecia
José Vazio de algum lugar. “Elias descorô depois que apresentei o Zé
pra ele”, encafifa Clemente em silêncio.
Quase duas horas após o início da consulta,
Elias Xavier, renomado cirurgião da capital mineira, retira da gaveta dois
blocos de papel, sendo, um, de prescrição de medicamentos e outro, de pedido de
exames. No receituário, o médico prescreve algumas vitaminas e um ansiolítico
para diminuir a ansiedade. Na solicitação laboratorial, além dos exames de
praxe, Elias solicita, ainda, tipagem sanguínea, já que, José Vazio, perdera,
além da memória, o seu tipo de sangue. Terminada a anamnese, o médico convida
José Vazio e seu amigo de longa data, João Clemente, para tomarem assento à
mesa e o acompanharem num apetitoso lanche da tarde. A prosa rendera boas horas
regadas a pão de queijo, rosquinhas de nata, queijo fresco e um café adoçado
com rapadura. Mas José, como sempre,
Vazio.
O sol já se despedia da tarde quando João
Clemente e José Vazio cruzam a porteira de volta à fazenda. Ambos pareciam
frustrados. A verdade é que José esperava uma providência que não era cabível
ao médico: um milagre. João Clemente, por sua vez, voltara intrigado, porque
percebera que algo mudara no semblante do amigo depois de bater os olhos no seu
empregado. Mas, por outro lado, não fora, também, um dia totalmente perdido
para José, levando-se em conta algumas palavras de Elias que ainda martelavam
em sua cabeça: “sua memória não está morta, seu José; está perdida. Cabe ao
senhor, com muita calma, persistência e paciência, lembrar onde deixou cair
suas lembranças pelo caminho”, disse o médico durante a consulta.
Noite alta ascendia estrelas no céu da fazenda
São José. Aos pés da Sagrada Família, dona Feliciana, reza preocupada o terço
costumeiro. O marido fora até São Roque para comprar os remédios de José Vazio
e não retornara. A ansiedade da esposa, porém, não era somente pela demora do
marido, mas porque recebera um telefonema que a deixara extremamente feliz, e,
o quanto antes, queria compartilhar a boa notícia com seu companheiro.
Desconhecendo a preocupação e a ansiedade de Feliciana, João Clemente, depois
de ter ido à cidade, retorna ao sítio do amigo Elias para comprovar suas
suspeitas anteriores. Sem delongas, fala ao vizinho que estranhara a reação
dele depois que o seu empregado, José, ficara diante dos seus olhos. “Fala a
verdade, Elias! Você conhecia o Zé de algum lugar? Alembrô
da fuça dele, num foi?”, fala João, apertando o
médico contra a parede. Elias, muito sem graça, confessa que, realmente, já
tinha visto aquele homem antes, mas, infelizmente, mais nada lhe vinha à
cabeça. Clemente, com o paieiro
apagado no canto da boca, deu-se por satisfeito e volta para casa, aturdido:
“tem caroço nesse angu”, resmungava o fazendeiro.
Já na fazenda, antes mesmo de chegar à varanda
do Casarão, Feliciana, duplamente ansiosa, corre de encontro ao marido no
terreiro, abraça-o, beija-lhe os lábios ressecados pelo sol, e, segurando-lhe a
cabeça com as duas mãos, conta-lhe chorando a novidade: “nossa filha tá voltando,
meu velho!” Atordoado com a notícia, João Clemente esquece os problemas de
segundos atrás e abraça forte a companheira. “Mas quando é que chega a nossa fia,
muié de Deus?”, pergunta Clemente
com o rosto encharcado de alegria e com voz embargada. “Na semana que vem”,
responde Feliciana comungando da mesma emoção.
Comentários
gostei disso...
pamela
até que estou gostando.
assinado: JOSÉ VAZIO...
que mistério envolve o josé vazio, sr. luciano? estou curioso.. será que semana que vem, temos uma resposta?!
abraços de seu leitor - marcos francisco s.o. oliveira
to curiosa para saber tudo do José
(KEDMA O'LIVER - enviado por e-mail)
Luciano, gosto de ler, e quando uma hirtótia prende a minha atenção quero logo saber o final
Bom dia
Kedma