Eni Lis Rivelino - ilustração feita com caneta Bic |
A LIÇÃO
por Hilda Curcio
Na caminhada, cabeça baixa, olhava meu decote pouco, consertava-o, quando
achei uma nota de dez reais ao chão, dobrada em quatro partes iguais
retangulares. Tão pouco dinheiro me dando tamanho trabalho, tal preocupação...
Suplicia-me aquele valor pequeno. Decidir o que fazer com ele... Vou pegar
todos os números que houver na nota, fazer todas as combinações e jogar...
Mas, suor, medo, vergonha, angústia, tantos sentimentos misturados pela
dúvida de pegar ou não o dinheiro encontrado (e a lição que dei ao meu filho a
vida toda, desde criança? — Não se deve pegar nada, nem ao chão, que não seja
seu; o dono poderá voltar e encontrará o objeto no mesmo lugar onde o
perdera.), cabeça cheia, caminhada... Indago aos transeuntes? Não há alguém tão
perto, mas também ninguém tão longe... Não.
Então? E a lição? Com medo não sei bem de quê — não sei se de que
descobrissem que eu estivesse pegando o que não era meu, ou de que Deus me
visse fazendo algo que recriminara e proibira meu filho de fazer a vida toda, sei
lá, medo, enfim, muito medo, permaneci uma fração de segundo espreitando a
nota: pior que o castigo divino é a memória trazer-me num eco a voz inocente e
inquisidora de meu filho. Ela não subiria sozinha, eu teria que me abaixar para
pegá-la.
Tal pânico fez com que eu me decidisse muito rápido — peguei a nota
dobrada, escondi-a (não sei de quem) na mão com que segurava o celular,
esquecida de qualquer noção de higiene praticada até então, sem ouvir minhas
próprias indagações, ainda que não-gritadas, em vão — Quem havia perdido aquela
nota? Quem colocou sua mão naquele dinheiro antes? Havia caído da mão mesmo? Do
bolso? Da cueca? Da calcinha? De onde? Aí, mais um drama!
Que nojo! Quanto nojo! Agora, basta!
Dobrada em quatro partes iguais retangulares, no eixão do lazer sentido
norte (110/116), às 11h49min da manhã de domingo, em caminhada solitária, a
nota e eu.
Pensando bem, deve ser um presente de Deus — meu coração está vazio,
minha mente é vaga, meu estômago faminto (quase meio-dia), minhas mãos vazias de
carinho e minha conta bancária minguada. É um sinal de Deus. Só pode ser.
Finalmente, convenço-me — acho que poderei ficar com o dinheiro.
Após tanta... Vieram os obstáculos, também surgiram inevitáveis os
cálculos — é meia aula dada! (Não devolvo! Olha o tanto que estudei para poder
dar meia aula!) É revisão de duas laudas! (Não devolvo! Olha o tanto que
estudei para aprender o idioma!)
E, cada vez mais, sentia-me culpada, despida, vasculhada, avaliada,
cobrada, julgada (encostada na parede).
Cheguei em casa. Mais
dúvidas: anuncio na rádio? Falo ao porteiro, ao garagista? Corri para a área de
serviço. No tanque, ainda um dilema: desdobrei a nota de dez reais asquerosa,
peguei detergente, lavei-a como que para apagar meu pecado (meus erros, minhas
dúvidas, inconvicções todas sobre tudo).
Quase refeita, sentei-me à mesa, em seguida, com o jornal do dia, olhos
dançando pelas letras, inquietos o bastante, a culpa sempre próxima. Procuro.
Alguém teria anunciado no jornal a perda do bem? Levantei-me, abandonei o
jornal resoluta, fechei a porta atrás de mim, parei na primeira padaria,
escolhi vários pães, paguei com a nota impertinente.
Não totalmente convencida ainda, peguei os pães, voltei para casa e
preparei um café.
Ninguém merecia mais aquela nota de dez reais que eu.
Comentários
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Edweine Loureiro
Uma licao, realmente. E um belissimo texto. Parabens, Hilda.
é chato pacas ficar com a grana, mas não tem dono...rsss pensava eu... e acabei ficando igualzinha a personagem.
Muito bom Hilda! muito bom mesmo.
Pamela Andrade
Parabéns para as duas artistas. Gostei muito!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Carlinhos da Palmeira
Este texto representa bem isso e o mais interesse é que as palavras estão fluindo de uma maneira muita prazerosa de ler.
a imagem que acompanha é o retrato certo desses fantasmas que habitam essas confusões mentais.
Marcio Amparo
Continuem em parceria.