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O arquivista
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O edifício “Atlântico” que ficava no Bulevar Prata nº 86, possuía linhas clássicas e severas, mas dois grandes lampadários barrocos, com a figura de Netuno, ladeavam sua entrada.
Todos os dias, após o expediente de arquivista, Julião Noronha sentia um doce alívio ao penetrar no prédio, sob as luzes altas. Ali estava em seu território, a poucos passos de seu mundo privado, arremedo do ventre materno, e longe do caos exterior. Em seu apartamento reinava a maior ordem possível: no sofá, nas mesas de TV e refeições, no bufê da sala não havia um grão de poeira ou objeto deslocado; no restante dos cômodos, idem. Quem surpreendesse o quarto de Julião, um pouco antes dele emergir do sono, veria, já separados: as calças cuidadosamente dobradas sobre uma cadeira, a camisa e a roupa interna sobre o espaldar da mesma, os sapatos, muito juntos, debaixo da cama, e, no guarda-roupa, seu chapéu, o sobretudo, a gravata e um paletó, cada um em um cabide separado. As gavetas da cômoda, onde repousavam as camisas, meias e as roupas íntimas, cheiravam a sabão de alfazema; sobre o mesmo móvel, simetricamente dispostos, ficavam um relógio de pulso, uma carteira com documentos e dinheiro, um porta-retratos com seu pai bombeiro e uma agenda onde J.N. anotava minuciosos detalhes de sua vida, compromissos, contas a pagar, encontros amorosos etc. O morador do apartamento 33 era um homem muito ordenado e metódico, que tirava com álcool o pó dos arquivos que tinha ficado nas unhas.
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Mas todo dia, sem que o arquivista percebesse, o desatino do mundo entrava junto com sua sombra entre as quatro paredes. Uma ocasião, deixou de fechar o creme dental, que escorreu um pouco de sua gosma na pia; em outra oportunidade, esqueceu de colocar na calçada o saco de restos da cozinha para o lixeiro levar. Dezenas de desvios aqui, dezenas de desvios ali, uma noite de outono, após o trabalho, Julião Noronha sentiu uma súbita vontade de urinar no tapete da sala. Quis brecar o impulso, distrair-se com a girafa da TV, porém não conseguiu: com êxtase, realizou o batismo oficial de sua loucura. Um mês após o ato extravasante (e extravagante), o vizinho, do 32, ouviu um barulho ensurdecedor de objetos quebrados e deslocados e comunicou ao síndico. Este bateu à porta de Noronha, que atendeu-o com olhos eufóricos de barbárie: no meio da sala, anavalhado, o sofá mostrava suas entranhas de cadáver.
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O arquivista que, aliás, não comparecera à repartição durante dias, recebeu a visita do pai, alertado pelo síndico. O bombeiro, que não se abalava nem com as chamas do inferno, horrorizou-se ante a caricatura do filho, que se deleitava com a própria sordidez e a circundante. Insetos transitavam pela cozinha, sem esmagamentos, e folhas rasgadas de livros boiavam no vaso sanitário. Sem outra saída, o pai resolveu interná-lo numa clínica particular. Diante de nenhuma melhora e esgotados os recursos familiares e o apoio dos colegas de escritório, Julião foi remetido ao hospício público. Nele, o paciente esqueceu de suas calças cuidadosamente dobradas ou de suas cuecas com perfume de alfazema. Sua roupa mais frequente era a camisa de força. Se persistissem as crises debilitantes, seu dossiê acabaria no arquivo morto.
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E quando Haroldo Cunha, o novo inquilino, penetrou no apartamento 33 do edifício “Atlântico”, sentiu uma atmosfera de naufrágio. Então afastou as cortinas azuis e olhou a rua arborizada.
Cláudio Feldman é autor de 47 livros; o mair recente é "Photoprovincias" (poemas).
E-mail: claudiofeldman@uol.com.br
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