O conto que se segue foi escrito a partir do poema Aves Tristes de Francisco Ferreira.
Hoje,
amanheci sem-vontade. De tudo. De nada. Olhei a pilha de livros todos com um
papel marcando o ponto da leitura interrompida — ausência daquelas linhas
prenhas de fatos sem-graça. Sem-propósito. No chão, papéis amassados pela
intensa tentativa de escrever, nunca acertando o ponto da história, sem-ânimo.
Vontade de andar à toa. Sem-companhia. Desesposada. Sem-música. Sem-sol.
Sem-carro. A oficina descumpriu a promessa. Sem-fome. Café me sustenta sempre.
Vinho, às vezes. Água? Atravesso todas as ruas por que passo. Ânsia de
desaparecer numa multidão que não vislumbro. Sem-pessoas. Desmovimento. Voltar?
Sem-intenção. Imaculado-me. Procuro um tronco para me suster. Qualquer árvore
me serve. Sem-sono. Sol enfraquecido na cabeça. Assisto as primeiras estrelas.
Venta. Sem-frio. Com essa roupa? Sem-dinheiro. Ouço tímida e cúmplice a gaita
na boca do Eduardo. Bar principal. Meus ímãs. Ninguém me sonda. Entrada
triunfal, embora. Ínfima atração provoco. Sem-olhares. Preciso beber. Ou vinho.
Ou café. Ou água. Que ninguém é capaz de me recusar. Engano-me. Despercebida.
Desperseguida. Ignorada.
Um
homem velho, gordo, fétido por-certo, feio, olha-me verdadeiro sem-interesse.
Desinibida pela sede. Descrio a mudez. Sem-perceber o papel em suas mãos. Aves
tristes, Francisco Ferreira.
— Se
você fosse banco você me emprestaria dinheiro?
— Como?
— Você
pode se fingir de banco?
— De
praça ou de moeda?
— De
moeda.
— Ah...
Pensei que quisesse se sentar. Não está cansada? Move as pernas esperançosas. Onde esteve? Aceita uma bebida?
Pergunta
mágica, útil, após enxurrada de questões. Nada respondo. Aceito a bebida,
gestual, no entanto. Qualquer. Que escolhesse. Sem-me-sentar. Como pagar a
gentileza? Próxima questão, agora, feminina.
Sinto
vergonha da calcinha manchada do azul do jeans. Ele poderia ver. Sentir nojo.
Mas ele não precisaria ver a calcinha. E se ele a quiser cheirar?
Sem-permissão.
Descontrolo
meu suor. Algures de mim. Desjustifica atitude. Nenhures. Tudo nos desunia. A
mesa de canto. O poema. A aparência desagradável de homem. Que não buscava
sexo. O desdesejo de ambos. Desatrativos. O cheiro másculo. A calcinha
manchada.
Entretanto.
Algo nos atava. A sede.
E adoto
a liberdade de não portar dinheiro. Ele me examinou, sondando minha idade. De
repente, move-se na cadeira e transmite um odor nauseabundo de esperma
represado com cueca sem-trocar e hálito vinícola e axila suada e roupa deslavada
sem-troca nunca. Eu não o suportaria penetrar-me. Torci para que ele fosse ao
banheiro, quem sabe, lá, ele pensaria em me levar para a cama, então, lavaria o
pênis na pia. Sem-vontade de o limpar. Até transaria com ele, porque eu poderia
sair correndo se não conseguisse fazê-lo gozar, que ele jamais me alcançaria.
Corro demais. Mas, e se ele não pedir pra transar comigo? Ele não parece muito
carinhoso. Já foi casado? Tem filhos? Por que saber tanto?
A água
desvirginava sua imundície. Desponta com as mãos úmidas, finalmente. Lindas
mãos machas. Elas podiam me tocar. Estiro as minhas. Decidida. Designorada.
Desejares. Olhares conluiados. Caminhamos na mesma direção. Volta à mesa, pega
o poema. Sai. Sigo-o sem-pressa de acabar.
Hilda Curcio
Comentários