Por Cláudia Brino
A literatura árabe é rodeada de sabedoria,
imaginação e espiritualidade. Entre os árabes a eloqüência sempre foi
valorizada, era inclusive, uma condição exigida para se poder exercer a chefia
da tribo e, com certeza essas tribos primitivas eram imbatíveis na poesia.
Havia feiras anuais e gravava-se em ouro, sobre folha de palmeira, as peças
vitoriosas que eram dependuras. Desde a infância, aprendia-se a refletir e a
descrever o camelo, o vento, as montanhas, o deserto...
Dois componentes determinam a sabedoria: o
dom natural e o tempo, que sazona o homem, e essas características tornam a
literatura árabe privilegiada.
A sabedoria, que não é repartida entre todos
os homens e todos os povos, se expressa em livros como os Prolegômenos, de Ibn-Alkhaldun, Libertação
do Erro, de Al-Ghazzali, A Epístola
do Perdão, de Al-Maarri, O Profeta
de Gibran, entre tantos outros.
A sabedoria se manifesta em anedotas,
aforismos, provérbios, re-flexões. Muitos dos aforismas são anônimos, como esses:
Um profeta disse a Deus: “Senhor,
peço-vos uma coisa só: livrai-me da língua dos caluniadores.” E Deus
respondeu-lhe: “Meu filho, você quer ser melhor do que eu?”.
Três são os causadores da perdição do
homem: sua boca, seu estômago e a mulher do próximo.
Se os primeiros registros literários são do
século V, a “literatura oral”, sem dúvida é mais antiga; quando o homem ainda
viajava no dorso do camelo e media o tempo pela progressão da sombra que a
palmeira projetava sobre a areia do deserto.
A Imaginação no mundo árabe
O que difere a mente oriental da ocidental é
que a mente ocidental é mais cartesiana, ou seja, aquela que partilha das
idéias de Descartes. O ocidental percebe pela razão e a observação e evidencia
com premissas. O oriental é mais intuitivo, são regados de imaginação,
inspiração, profecias. As verdades que ele descobre surgem da fantasia, de
mundos desconhecidos, seu campo predileto é a religião.
As palavras adquirem magia e os ocidentais
procuram argumentos e estatísticas. Algo muito discutido é a onipresença de
Deus, e um autor árabe apresenta-a com uma simples evocação: “Na noite preta,
sobre uma mesa de mármore preto, uma formiga preta. Deus a vê.”
O livro que se destacou em idéia e
imaginação foi As Mil e Uma Noites. O
livro foi traduzido pela primeira vez para o francês no século XVIII, por
Antoine Galland, e até o final do século teve mais de trinta edições. Desde
então foram feitas mais de trezentas edições em várias línguas.
A espiritualidade no mundo árabe
A terra árabe é sinônimo do encontro de Deus
com o homem.
Foi nas montanhas do Oriente Médio que
Moisés recebeu as Tábuas dos Dez Mandamentos, que Jesus pregou o mais belo
sermão da história (Sermão da Montanha) e que Maomé foi encarregado de sua
missão profética.
É nesse cenário que a literatura árabe se
faz presente e é considerada a mais espiritual de todas as literaturas.
O amor na literatura árabe
“Amai, pois o amor desliga a língua
do gago,
ilumina o obtuso, torna o avaro
generoso e
inspira a todos a civilidade, a
elegância, a
cortesia, a atividade, o
refinamento.”
O ditado acima citado não distingue a que
tipo de amor devemos sentir e a literatura árabe conheceu a todos: o amor
erótico, o platônico, o romântico, o místico.
O amor erótico é o culto ao corpo, sua única
meta é o gozo. Há uma história divertida sobre esse fato: “Uma mulher procurou
o juiz Ibn Zubais e queixou-se de que seu marido mantinha relações com a criada
da família. Chamado a julgamento, o acusado explicou: “Minha mulher é escura; a
criada é escura; e eu sou míope. Quando é de noite, tenho que pegar o que está
à mão.”
(Naquela época, não havia óculos, e a
miopia podia servia de desculpa legal.)
No amor romântico, elegemos o próximo e
ama-se tanto o corpo como a alma. O poema O Colar da Pomba (escrito por Ibn
Hazm, austero teólogo que dedicou sua vida a escrever tratados de metafísica e,
um dia, para se divertir, compôs esse poema), revelou ser um dos poemas de amor
mais saborosos:
Quando ela tarda a chegar,
Passo minha noite fazendo companhia à
lua
E vejo na claridade desta
O reflexo de sua própria luz
E minha noite corre no êxtase.
O amor platônico vive tudo o que um amor
pode oferecer: a paixão, a voluptuosidade, e mesmo que as circunstâncias
separem os dois enamorados, o apaixonado permanecera fiel a vida toda. Privado
de sua amada, o poeta prefere a solidão ou a morte.
O amor místico tem como representante os
poetas Ibn Al-Arabi, Al-Hallaj, Ibn Al-Farid (além de outros), que pertencem à
Escola Sufi que concebe a religião como o amor a Deus e concebe Deus, não como
o mestre e o juiz, mas como a essência do amor.
A religião e o amor se confundem. Os poetas
místicos deixam gritos de amor, lidos até hoje:
Se minha destruição deve unir-me a
ti,
Oh, faze que ela venha.
Que eu seja o teu resgate!
Seguindo a história
A literatura árabe nasceu na Península
Arábica, onde são localizadas, hoje, a Arábia Saudita e o Iêmen. Suas origens
são fragmentas e se perdem no tempo, mas já nos aparecem em um estado avançado
de perfeição, sob duas formas: poesia e prosa.
A poesia reflete a vida social e as emoções
dos que criaram, além do amor, os temas mais freqüentes são: a coragem, a
bravura, o respeito da palavra dada, o sentimento de honra. As regras da
métrica são rígidas: o poeta deve manter a mesma rima em todo o poema e dar a
cada verso um sentido completo. Um outro ponto importante é a sonoridade, como
nota-se neste verso da poetisa Khamsá, lamentando a morte do irmão:
Fala, wa lahi lá, ansaka hatta
Ufárika muhjaty wa yushaqa ramsy
(Pois eu não, por Deus não, eu não te
esquecerei
Até que separe d eminha alma e até se
fenda o meu sepulcro)
Na prosa são conhecidas três formas (no
período pré-islâmico): o relato de histórias (qisa), muito popular e difundido; sermões (khtuba), proferidos pelos religiosos; e a prosa rimada (saj), praticada pelos adivinhos. As três
formas são encontradas no Alcorão. Maomé
não sabia ler ou escrever, falava sob o efeito da inspiração, e suas palavras
eram guardadas de memória ou registrada em folhas de palmeiras, pedaços de
couro, pedras... Foi o califa Osman que as reuniu mais tarde no volume que hoje
conhecemos. Após o aparecimento do Islã, a poesia, foi superada pela prosa que
passou a responder às necessidades do momento: revelação de nova religião,
organização do novo Estado, conquistas, unificação e doutrinação de tribos.
Anteriormente divididas e esparsas. Os primeiros sucessores de Maomé, após sua
morte (632), mantiveram na Península Arábica o centro político e administrativo
do novo império.
Em 661, o califado foi conquistado por
Moauiyat e fundou uma nova dinastia: os Omíadas. Nesse período surgiu o gênero risala (epístola), que se referia a
temas práticos, como conselho aos governadores ou cortesãos. Em 750 o último Omíada
é derrotado e surge uma nova dinastia: os Abassidas, o novo ambiente modificou
o caráter da literatura, incorporando a filosofia, a sociologia, a ciência, a
história, as viagens, além dos temas eternos relativos às aventuras do coração.
Outra característica importante foi o extenso lugar que a poesia consagrou,
pela primeira vez na literatura árabe, às belezas da natureza externa: os
jardins, as flores... “Se quiseres ver a glória de Deus, contempla uma rosa
vermelha”. Tanto a poesia como a prosa ficaram livres dos rígidos moldes
tradicionais, adquirindo assim flexibilidade. Nessas formas incluem-se todos os
gêneros literários: ensaios, contos, alegorias, elegias, poemas épicos,
fábulas, exposições filosóficas. A literatura dessa época é rica demais, mas
surge o século XII e junto com ele aparecem o Talermão e seus tártaros,
Gengis-Khan e seus mongóis, Osmã e seus turcomanos, que invadiam as cidades,
transformando seus habitantes em prisioneiros, jogando-os em caldeiras
ferventes, serrando-os em dois, enterrando-os vivos. Tamerlão fez esmagar sob
os cavalos mil crianças. Depois de ocupar Bagdá ordenou uma matança que durou
oito dias, com os crânios massacrados, os soldados ergueram cento e vinte
pirâmides. Diante de tanta barbárie era impossível acreditar que as letras e as
artes pudessem sobreviver, porém sobre toneladas de crueldades, as sementes da
criação esperavam o momento certo, e as primeiras relíquias re-nasceram no
Líbano. Novamente a cena muda, junto com a decadência dos turcos (últimos
bárbaros a dominarem o Oriente), surgem também a revolução industrial e a
literatura árabe acompanha cada mudança. Vieram as gerações de poetas e
escritores que eram atraídos pelo futuro, entre eles: Khalil Mutran, Uadih Akl,
Chibli Mallat, Bichara El-Khoury, e aqueles atraídos pelo passado como: Elias
Abi-Chabki, Said Akl, May Ziadi.
A literatura árabe é extensa e magnífica,
conseguiu sobreviver a terrores, os poetas que foram exilados ou mortos até
hoje são lembrados.
É uma arte eterna de pura magia, que consegue
atingir a alma, e que chegando ao fundo dessa alma consegue escrever um poema
dentro de qualquer coração.
No dia da ressurreição, juraste-me
que nenhum/ homem havia beijado teus lábios./ O Senhor te escutava, e me
encheste/ de alegria./ Porém me esqueci de fazer-te jurar que nenhum/ homem te
havia falado de amor./ Certas palavras de amor não são, por acaso, tão/
perturbadoras como o beijo nos lábios?/ Meu pensamento se volta continuamente
para ti:/ a dúvida me tortura.
(do livro: O Jardim das Carícias –
coletânea de curtos poemas de amor, de autores árabes desconhecidos).
Cláudia
Brino – cplitoral@gmail.com
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