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A História de José Vazio - Parte II - por Luciano Marques

Não leu a primeira parte? Então leia essa parte  antes de iniciar a parte II
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II
Noutros tempos, o avô de João Clemente, Aureliano Lopes, adquirira de forma misteriosa glebas de terras de uma fazenda histórica em Minas Gerais, depois que a mesma fora desmembrada do espólio de um ilustre fazendeiro. Aureliano, homem muito temido em toda a região, carregava no currículo a má fama de matador e, à boca miúda, comentava-se que o fazendeiro mantinha trabalhadores sob regime de escravidão. Tais boatos nunca foram devidamente apurados nem comprovados. E, mesmo sob grande suspeita, o coronel Aureliano, como era chamado por todos, foi multiplicando sua fortuna, comprando terras por toda parte.
Anos a fio acumulando riquezas e crimes, viu-se sozinho em meio a tantos bens e empregados mal pagos. Então, aproveitando-se do grande poder que exercia sobre muitos moradores ribeirinhos, “acerta” matrimônio com uma descendente dos índios Cataguases, a linda Amanacy e, em troca, repassa à família da mestiça algumas cabeças de gado e uma choupana ao pé da serra, cercada por uma pequena mata nativa. Desse casamento, nascera o único filho do casal, Jerônimo, que crescera sem o pai, depois que o coronel fora encontrado morto em suas terras, amarrado a uma árvore, com uma lança espetada em um dos olhos e todos os dentes de ouro arrancados.
Com a morte do pai, Jerônimo Lopes fora criado pela mãe, Amanacy, e cresceu em grande contato com a natureza e com alguns índios que ainda moravam por perto. Porém, anos mais tarde, a febre mata a viúva de Aureliano e, Jerônimo, já homem feito, casa-se com Geralda Clemente, filha de Felisberto Clemente, um dos fazendeiros mais ricos da região. Da união dos dois, nasce João Clemente Lopes, que, após descobrir a má fama do avô, nega-se a assinar o sobrenome Lopes, assinando, apenas, João Clemente, valorizando, assim, a família digna e austera de seu avô materno, Felisberto Clemente.
Assim que Jerônimo construiu uma pequena escola em suas terras, para que as crianças da redondeza pudessem estudar, seu filho, João Clemente, conhece a professora Feliciana Borba, que, tempos depois, passaria a ser sua esposa e fiel companheira de todas as lidas e rezas. Não demora muito e logo vieram os filhos do casal. Primeiro, nasce Ana. Quatro anos depois, Frederico. Mas os pais de João Clemente nem tiveram tempo de ver os netos crescerem, morreram praticamente juntos, com diferença de poucos dias um do outro, vitimados por uma peste que matara centenas de pessoas na época.
Já em tempos atuais, os dias ventaram rápido pelos outeiros da Canastra, arrastando, assim, meses e estações inteiras, desde a chegada de José Vazio à fazenda dos Clemente. O viver na Serra parecia um quadro vivo, pintado diariamente, por moradores e turistas que por lá passavam. As chuvas chegavam sorrateiras, iam abrindo sulcos nas estradas de chão e se escorrendo mansamente rumo aos córregos, até ganharem força e se misturarem às águas do São Francisco. As matas, carregadas de verdes de todos os tons, perfumavam o ar e amenizavam o calor do verão. Os pássaros – milhares -, todos em revoada, sobrevoavam o Parque e desenhavam setas no céu mais azul já visto nas Gerais.
Num final de tarde, sentado num velho banco à entrada do casarão, João Clemente pita seu paeiro, baforando uma fumaça doce contra o vento, contemplando a vida simples na fazenda São José. Feliciana, após rezar o costumeiro terço aos pés da Sagrada Família, senta-se ao lado do marido, numa cadeira de balanço, alternando a atenção entre o velho companheiro e as orquídeas coloridas a descansar no parapeito da varanda. Ninguém se atrevia a interromper aquele momento – até o sol, deslumbrado com a imagem, parou para olhar e tardou alguns minutos a se por.
Em uma das casas dos colonos, Argemiro, o caseiro, cutucava seu bicho-de-pé com um canivete, enquanto José Vazio, o mais novo empregado da fazenda, descansava em sua cama de colchão de palha, procurando lembranças nas paredes caiadas. Estava, ele, totalmente recuperado das lesões que sofrera, com exceção, é claro, do olho direito, que, aparentemente, estava são, mas ainda estava mudo da vista. Um ano se passara e José estava bem adaptado ao lugar e aos costumes locais. Parecia até já conhecer aquelas bandas, pela facilidade em se embrenhar nas matas, descobrir trilhas e se guiar pelo som das pequenas veias d’água.
Com o passar do tempo, toda a natureza conspirava a favor de José Vazio. As vacas, por exemplo, aparentavam mais mansas e produtivas. Os bois de carro, mais fortes. As galinhas passaram a botar mais e, os frangos, cresciam tanto que nem pareciam caipiras. A cadelinha Filó, sombra de dona Feliciana, não era mais importunada pelo gato do caseiro e, com isso, volta a latir e a sorrir com o rabo, depois de anos de mudez. Os porcos, ah, os porcos! Esses continuavam tão porcos ou mais. Enfim, tudo transcorria tranquilamente, sem sobressaltos nem imprevistos. A vida na Serra era quase um poema de Caeiro. Mas, Vazio, continuava sendo o improvisado sobrenome de José: de nada se lembrava.  

Comentários

Anônimo disse…
olá estou acompanhando a história..
parou em um trecho muito bom....
pamela
Anônimo disse…
LEGAL... TÔ ME SENTINDO EM CASA...RSS

JOSÉ MENOS DA SILVA
Anônimo disse…
Obrigado, meus amigos!

Fico muito feliz por, de alguma forma, tocar-lhes a sensibilidade. Aqui, no sul das Minas Gerais, quem já leu a história completa, gostou. Ajudem-me a divulgar a história.

Abraço e boa leitura!

em tempo: a segunda parte é uma das minhas favoritas e uma das que mais dão liga à história.

Luciano Marques
Anônimo disse…
estou gostando sim.. caro escritor, muito interessante
José menos da silva

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