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Vieira Vivo - Prosa

ACIDENTE SÉRIO

O que se comenta é que um senhor de aproximadamente setenta e cinco anos e de aspecto franzino decidiu passear de bicicleta pelas ruas próximas à sua casa, numa tarde de sábado. Percorreu algumas ruas para se aquecer e, então mais disposto, aventurou-se a atravessar o viaduto que corta seu bairro. Prudentemente, na ida, fez o trajeto empurrando sua bike. Porém, na volta, já exausto, resolveu descer o viaduto montado sobre a bicicleta.
   
  Ocorre que no meio da descida o idoso descobriu que os freios não o obedeciam. A bicicleta foi tomando velocidade e ele em total desespero, ainda vislumbrou ao final do viaduto um cavalo estático e empacado bem no meio da pista. Com a velha geringonça sacolejando como um bólido desgovernado embaixo da bunda, o homem então, na vã tentativa de proteger-se agarrou com mais força o guidão, levantou as duas pernas para o alto e com o terror estampado na face aguardou o impacto.
   O choque real abateu-se sobre o flanco traseiro do animal, porém um dos pés do velhinho  adentrou,  não se  sabe como,  bem no centro do cú do cavalo. Ao sentir a atochada o bicho revirou a cabeça, chacoalhou a anca, levantou delicadamente uma das patas traseiras  e a partir daí ficou com o olhar perdido e com a expressão dissimulada dando a entender que aquilo tudo não era nada com ele. 
     Somente após a efetiva chegada do resgate é que  populares e paramédicos conseguiram, a muito custo e com enorme resistência, retirar o pé do idoso da cavidade retal do cavalo.
     Agora, passadas algumas semanas o que se observa é que todo dia à tardinha, esse mesmo animal tem se postado na lateral do viaduto observando os que passam. Ao detectar algum ciclista descendo, imediatamente, posiciona-se com as ancas voltadas para a pista.
     O septuagenário, felizmente, não teve maiores seqüelas. Salvo pelo fato de que, toda vez que se aproxima da velha bicicleta o dedão do pé levanta. 
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O RESGATE

O enorme terreno abrigava, agora, mais um supermercado. Por muitos anos havia sido a sede do Hipódromo de São Vicente. A intensa vegetação fora substituída por um grande estacionamento e lojas diversas que atraíam, naquelas semanas de inauguração, um grande número de visitantes.

     Uma cliente ao adentrar o banheiro, que exalava um intenso cheiro de i-móvel recém-construído, assustou-se ao notar um enorme grilo tentando esconder-se atrás da curvatura de cerâmica branca do vaso sanitário. Urinou com certo receio e ficou meditando como aquele grande inseto ficara preso naquele cubículo. Um local inadequado, frio, revestido de azulejos brancos,

sem saídas e ocasionando, a ele, constante pânico devido às repentinas visitas dos humanos.

     Ao sair acabou esquecendo-se da dramática situação daquele pequeno ser aprisionado em reduto tão adverso. Porém, duas semanas depois, ao retornar acompanhada de sua filha, esta o avistou. Encolhido no mesmo local visivelmente abatido apresentando uma palidez na coloração devido à ausência de raios solares. Estava frágil embora seu porte fosse, ainda, robusto para os de sua espécie.

     Impressionada a moça comentou com a mãe. Ao ouvi-la, a senhora surpreendeu-se pelo fato de aquele inseto encontrar-se, ainda, no mesmo local. Como estaria se alimentando? Talvez, de pequeninos e raros insetos noturnos? Quanto tempo resistiria? Pois, sua postura demonstrava total impotência diante da realidade que o havia tão dura-mente aprisionado. A jovem, então, decidiu retornar ao sanitário. Antes disso fez um pequeno cone de papel branco.
     
     Adentrou silenciosamente ao toalete feminino e imediatamente o avistou. Aproximou dele o artefato cônico. Ao ver aquela peça roliça e branca as antenas do minúsculo ser moveram-se desconexamente. Sem pressa a jovem aguardou que o pequeno e corajoso espécime fizesse a sua própria escolha.

      Após algum tempo, o grilo moveu uma de suas pernas e tateou o cone. No longo tempo de duas semanas (para ele, talvez, meses, anos...) tinha à sua frente algo novo. A que isso o levaria? A outro mundo frio e solitário? Porém, era necessário tomar uma decisão. A mais importante e vital de sua existência. E, então, moveu a outra pata e decidido acomodou-se no tubo de papel.

     Súbito, sentiu-se elevado no ar. Primeiramente, notou a ausência do sufocante cheiro de argamassa e desinfetante e saboreou uma leve brisa juntamente com burburinhos desconhecidos. A expectativa tomou todo o seu ser. E, de repente, ao passar a porta da saída, o ar da tarde o envolveu. Seus pelos eriçaram-se e as antenas moveram-se freneticamente e todos seus olhos e patas tomaram vida e ritmo. Nesse momento sentiu sobre si o calor do sol. A benfazeja presença dos raios da estrela rainha o reconstituía totalmente. Os aromas do mundo fervilharam em suas antenas.

     Sentiu a moça pousar o artefato que o conduzia. Ainda, atônito, moveu a primeira perninha para fora e tocou uma folha de grama. Um estreme-cimento o tomou por completo. Demonstrava, agora, uma vivacidade contagiante. Moveu o segundo membro e, então, virou-se para a moça, que silenciosa, o contemplava. Deu um pequeno salto para frente e observou seu mundo, respirou profundamente e com um novo salto repleto de estupenda vivacidade embrenhou-se na pequena vegetação do jardim que margeava a lateral do armazém.

     A tarde, para todos ali, continuou rotineiramente enfadonha, mas aquela moça sabia e saberá sempre, que o cosmo testemunhou, naquele dia e local, um grandioso momento da Vida.
 
 

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