MINHA MÁSCARA É TAMBÉM SINGULAR
(27/6/2006)
Tudo dói — mas continuo — pago minhas contas quase sempre
pontualmente; se não, os juros são altos.
Tenho o mesmo cheiro de minha mãe, o mesmo cabelo tingido,
o mesmo corpo, a mesma ansiedade, as mesmas frustrações, sofremos as mesmas
perdas, temos os mesmos medos. A diferença entre nós é que ela já sabe o que
não interessa, e não é importante; quanto a mim, ainda viajo, ainda procuro,
ainda penso, pensa da minha própria vida.
Por que estou aqui? Como cheguei até aqui?
Pretendo tantas coisas, dentre as quais desviar minha mente
de homem para meu corpo de mulher. Por que ser tão sensível? Sinto-me engasgada
— perguntas jamais feitas, respostas nunca dadas, buscas eternas, perdas
confirmadas, a mesma música de sempre, o mesmo medo, a mesma angústia, a mesma
sensação...
Esqueci-me de dizer: sou funcionária pública concursada
(ninguém me tira daqui), nem baixa nem alta; nem gorda nem magra; nem nova nem
velha (isto é, nem jovem nem idosa); nem bonita nem feia — apenas eu. Mas isso
não foi idéia minha: nasci sonhadora; cresci apesar de; adolescente, vi-me
perdida num encontro; adulta, tornei-me no que sou; sou o que me tornei
(funcionária pública, apenas, é tudo) com uma classificação, carteira
funcional, contracheque e estabilidade não-emocional.
Cadê a estabilidade? Sou estável (cada vez amo intensamente
um homem diferente); fiquei estável (várias vezes tive um bom emprego);
mantive-me estável (nunca mais fiz concurso algum — concorrer a quê? a nada com
nada de nada por nada).
Talvez eu viaje, eu vá de férias, ou de volta, ou
simplesmente vá e não volte nunca mais. Pra onde voltaria? Por quê? Pra quem?
Talvez eu coloque minha máscara, a definitiva, na frente da outra, a
provisória. Sou provisoriamente eu — funcionária pública, carteira de
identidade, título de eleitora, nada mais.
E minha máscara não pretende cair. Não pretendo mais ser
estar ficar; não desejo mais sair ir voltar; não vou mais viver... Dessa forma.
Desse jeito. Nesse estado. Essa coisa. Essa vida. Não.
Quero mais.
Minha máscara deve cair. Deverá. Cairá. Ou eu a tirarei.
Ela é provisoriamente minha. Ela não é definitivamente minha. Uso-a. Estou.
Fico de máscara o tempo necessário para me acostumar sem ela.
6h30 da manhã de segunda-feira. Levanto-me. Lavo as frutas,
faço um suco, ligo a cafeteira, levo os pães à mesa, disponho prato, xícara,
talheres, guardanapo (preparo meu desjejum): civilização, conforto. Tomo banho,
visto as roupas, calço sapatos confortáveis, chave na porta, ligo meu carro
“Você mexeu com a minha vida...”. Roberto Carlos me conta tudo outra vez,
revela-me: “Estou falando desse amor apaixonado”. Nova promessa, sem cobranças:
“E até me esqueço das cicatrizes do passado...”; porém, cautelosamente: “Nessa
coisa de amor é preciso ter muito cuidado/ Uma dose a mais e a gente faz tudo
errado”.
Chego na sessão pontualmente, saio mais pontualmente ainda.
Almoço. Lancho. Janto. Tomo outro banho. Acaricio meu corpo com cremes diversos
(para os pés, as pernas, os cotovelos, o colo, o corpo, o pescoço, o rosto, o
contorno dos olhos, as mãos), visto minha camisola, estática, olho minha cama
(que fora) de casal, recuso-me a me deitar, não devo não posso: “Por quem eu
sou capaz de fazer qualquer coisa na vida...”. Olho novamente minha cama vazia,
novamente. Ligo o computador. Abro minhas mensagens Luciene.sem. Nenhuma vem de você.
Penso. Sonho. Desejo. Penso de novo. Sonho mais uma vez.
Desejo tudo.
- Você pode vir ao Rio de Janeiro? Dia... O lançamento do
meu livro será...
- Vou. Posso. Quero.
- Encontro você no aeroporto...
- Sim. Estarei lá. Meu vôo é...
Rádio ligado, motorista de táxi curioso...
- Incomoda o rádio? A música? Não? Pra onde?
Sorriso cúmplice. Obviamente Roberto Carlos tem razão:
“Você mexeu com a minha vida...”. Muito!
O encontro. O sexo. A traição. E o amor. Amor.
Quero tirar férias da mesmice rotina máscara.
Se eu perdesse o dom de me mascarar de bela, eu o faria,
atrás da fera, da fera que sou, da fera perdida dentro de mim, porque planejar
um carnaval interno eu não posso não consigo é tarde para isso é insuficiente.
Não me aliviaria a dor do uso pela máscara singularmente posta rente à minha
face estreita: a farsa alegre, a farsa alva, a farsa revés, porque metade de
mim é realmente máscara, e a outra metade é pura maquiagem sob a máscara — sou
a mesma funcionária pública.
- Hilda Curcio
Comentários
Grande abraço e muita paz!
Cris