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Patativa do Assaré Poeta popular do Ceará (Brasil)

enviado por Carlos Leite Ribeiro

Patativa do Assaré
Poeta popular do Ceará (Brasil)


Trabalho e pesquisa de Carlos Leite Ribeiro


António Gonçalves da Silva, conhecido como Patativa do Assaré, nasceu numa pequena propriedade rural de seus pais em plena  Serra de Santana, município de Assaré, no Sul do Ceará, em 5 de Março de 1909. Filho mais velho dos seus cinco irmãos, começou a vida trabalhando no campo e com a enxada. Foi casado com D. Belinha, e pai de nove filhos. Cego de um olho aos quatro anos estudou apenas quatro meses. Aos 16 começou a fazer do seu canto universal. A poesia aflorava no jovem adolescente.
Tem inúmeros folhetos de cordel e poemas publicados em revistas e jornais. Está sendo estudado na Sorbonne, na cadeira da Literatura Popular Universal, sob a regência do Professor Raymond Cantel. Patativa do Assaré era unanimidade no papel de poeta mais popular do Brasil. Para chegar onde chegou, tinha uma receita prosaica: dizia que para ser poeta não era preciso ser professor. "Basta, no mês de Maio, recolher um poema em cada flor brotada nas árvores do meu sertão". Cresceu ouvindo histórias, os ponteios da viola e folhetos de cordel. Em pouco tempo, a fama de menino violeiro se espalhou. Com oito anos trocou uma ovelha do pai por uma viola. Dez anos depois, viajou para o Pará e enfrentou muita guerra e invejas com outros cantadores. Quando voltou, estava consagrado: era o Patativa do Assaré. Nessa época os poetas populares vicejavam e muitos eram chamados de "patativas" porque viviam cantando versos. Ele era apenas um deles. Para ser melhor identificado, adotou o nome de sua cidade.
Obteve popularidade a nível nacional, possuindo diversas premiações, títulos e homenagens (tendo sido nomeado por cinco vezes Doutor Honoris Causa). No entanto, afirmava nunca ter buscado a fama, bem como nunca ter tido a intenção de fazer profissão de seus versos. Patativa nunca deixou de ser agricultor e de morar na mesma região onde se criou (Cariri) no interior do Ceará. Seu trabalho se distingue pela marcante característica da oralidade. Seus poemas eram feitos e guardados na memória, para depois serem recitados. Daí o impressionante poder de memória de Patativa, capaz de recitar qualquer um de seus poemas, mesmo após os noventa anos de idade.
A transcrição de sua obra para os meios gráficos perde boa parte da significação expressa por meios não-verbais (voz, entonação, pausas, ritmo, pigarro e a linguagem corporal através de expressões faciais, gestos) que realçam características expressas somente no ato performativo (como ironia, veemência, hesitação, etc.). A complexidade da obra de Patativa é evidente também pela sua capacidade de criar versos tanto nos moldes camonianos (inclusive sonetos na forma clássica), como poesia de rima e métrica populares (por exemplo, a décima e a sextilha nordestina). Ele próprio diferenciava seus versos feitos em linguagem culta daqueles em linguagem do dia-a-dia (denominada por ele de poesia "matuta").
Patativa transitava entre ambos os campos com uma facilidade camaleónica e capacidade criadora e intelectual ainda não totalmente compreendidas pelo meio acadêmico. Sua obra, de dimensão tanto estética quanto política, aborda diferentes temas e possui outras vertentes além da social/militante; como a telúrica, religiosa, filosófica, lírica, humorística/irônica, motes/glosas, entre outras. As múltiplas tentativas de categorização da obra de Patativa do Assaré (muitas vezes subjetivas e sem base teórica) expõem falhas inerentes dos próprios parâmetros de julgamento.

Patativa do Assaré -  Uma voz do Nordeste de Sylvie Debs  - (tradução de Ana Maria Skinner)
                                                                                                
“A literatura popular existe em outros países, mas nenhuma é tão relevante quanto a do Nordeste (…)  Aqui, no Nordeste, ela resiste e se transforma cada vez mais.”- Raymond Cantel
Patativa do Assaré, cujo verdadeiro nome é Antônio Gonçalves da Silva, nascido no dia 5 de março de 1909 na Serra de Santana, pequena propriedade rural da prefeitura de Assaré, ao sul do estado do Ceará, inclui-se na linhagem dos cantadores sertanejos de quem ele mantém a tradição.  Oriundo de um meio muito modesto, descobre a literatura através dos folhetos de cordel e dos cantadores, repentistas e violeiros do Nordeste. Casado, pai de nove filhos, dedicou sua vida aos trabalhos dos campos de Assaré,  No dia 23 de Março de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso rendeu uma homenagem pública ao poeta popular, atualmente cego, conferindo-lhe a medalha “José de Alencar” quando de sua passagem a Fortaleza (Ceará) para a celebração de seu octogésimo sexto aniversário.  Nessa ocasião foi lançado o disco Patativa do Assaré: 85 anos de poesia.  Patativa do Assaré, figura emblemática da poesia oral, tradicional e popular, graças à sua memória impressionante, recitou trechos de sua obra que celebram as grandezas e as misérias do sertão e cantou, acompanhado por Raimundo Fagner, entre outros, o célebre Vaca estrela e Boi fubá (símbolo da aflição do sertanejo diante das amarguras do destino e da rudeza de sua exploração) que havia contribuído para a sua notoriedade nacional nos anos 70.  A justaposição deliberada de alguns elementos de uma sucinta biografia põe em perspectiva a denominação de “Mestre da poesia popular” conferida pelo ensaísta e cineasta Rosemberg Cariry, que largamente contribuiu para a divulgação de sua obra.  Assim, através da evocação do itinerário pessoal do poeta e da análise de seus textos mais representativos, propomo-nos a apresentar as características essenciais da poesia popular, examinada aqui em uma dimensão mais larga, aquela da cultura popular nordestina. Primeiro ponto de amarração de nosso estudo, o trabalho que Raymond Cantel, primeiro pesquisador francês a se interessar pelo cordel, conduziu durante longos anos para a descoberta, o conhecimento, o estudo e a conservação da literatura de cordel, percorrendo regularmente o Brasil a partir de 1959 para recolher textos de repentistas, o que lhe valeu o título de Embaixador itinerante outorgado pelos repentistas da Bahia.  Segundo ponto, a aproximação de culturas populares proposta por Jean-Claude Passeron, que tenta ir além da atitude relativista (até mesmo populista), assim como da atitude legitimista (até mesmo miserabilista).  Terceiro ponto, nosso encontro pessoal com o poeta, em Assaré, que nos concedeu diversas entrevistas e nos proporcionou a ocasião de assistir às suas improvisações.

UMA APROXIMAÇÃO DA POESIA POPULAR

A denominação “poesia popular” foi muitas vezes associada a um certo número de representações negativas que a situam no lado da literatura menor por oposição à Literatura.  As conotações mais correntes que lhe são conferidas são aquelas das simplicidade dos temas abordados e das ideias tratadas, facilidade de versificação e banalidade das rimas, ingenuidade dos sentimentos expressos, falta de originalidade e de criatividade, pobreza de vocabulário, riqueza estilística limitada, simbólica indigente.  É nestes termos que Arthur Rimbaud (1854-1891) confessa seu interesse pela arte popular:  “Eu amava as pinturas idiotas, estofos sobre portais, cenários, lonas de saltimbancos, tabuletas, estampas coloridas populares; a literatura fora de moda, latim de igreja, livros eróticos sem ortografia, romances de nossas avós, contos de fadas, livrinhos infantis, óperas velhas, estribilhos piegas, ritmos ingénuos”.  Esta conceção se inscreve numa tradição romântica que compara o povo e a expressão artística e popular a uma imagem errônea visto que idealizada, à imagem de um povo bom, bonachão, trabalhador e virtuoso.  De sua parte, o escritor e filósofo alemão J.G. Herder (1774-1803), um dos teóricos do movimento romântico “Sturm und Drang”, havia defendido, tanto de um ponto de vista filosófico quanto literário, uma concepção da história segundo a qual os diferentes tipos de civilizações e de culturas seriam a expressão da alma popular, opondo ao ideal clássico — resultado do respeito a regras claramente enunciadas e respeitoso dos modelos da Antiguidade greco-romana — o gênio popular, expressão natural e espontânea.  A poesia popular, segundo ele, é “a obra anônima do Homem Natural, irmão histórico do Bom Selvagem: ela é a “Naturpoesia”.  Nesta ideia, já estava presente a aproximação que havia proposto Montaigne (1553 - 1592), persuadido de que o povo era capaz de se exprimir espontaneamente: “A poesia natural e puramente natural possui ingenuidade e graça, por onde ela se compara à principal beleza da poesia perfeita segundo a arte:  como se vê em vilarejos da Gasconha e nas canções que se nos relatam sobre nações que não possuem conhecimento de ciência alguma, tampouco de escrita”.  Em outros termos, a poesia popular existiria ao largo de toda aprendizagem ou respeito às regras acadêmicas e apresentaria êxitos dignos de serem reconhecidos.
No contexto nordestino, é preciso recordar que a poesia popular inscreve-se na tradição oral desta região do interior:  um de seus principais agentes, o cantador, proveniente do meio rural, em geral analfabeto, improvisa ou narra, graças à sua memória prodigiosa, “a história dos homens famosos da região, os acontecimentos maiores, as aventuras de caçadas e de derrubas de touros, enfrentando os adversários nos desafios que duram horas e noites inteiras, numa exibição assombrosa de imaginação, brilho e singularidade na cultura tradicional”.  A versificação utilizada, em geral a sextilha hexassilábica ou a décima heptassilábica de rimas contínuas, parece mais ser a expressão de uma técnica de memorização do que a expressão de uma forma poética erudita, a serviço da transmissão de um “saber simbólico: ciência, cultura popular, tradição”.  Daí, a escansão dos poemas propriamente é muitas vezes surpreendente pela sua falta de preocupação expressiva: “Nenhuma preocupação de desenho melódico, de música bonita.  Monotonia.  Pobreza.  Ingenuidade.  Primitivismo.  Uniformidade…  Não se guarda a música de colcheias, martelos e ligeiras.  A única obrigação é respeitar o ritmo do verso”.  A declamação se atém ao essencial: a narrativa dos acontecimentos.
A convivência com os chamados textos de poesia clássica assim como a leitura da obra de Patativa de Assaré permitem pôr em perspectiva esta primeira aproximação e interrogar a conformidade destas conotações evocadas precedentemente.  Sem dúvida, conviria debruçar-se mais adiante sobre as temáticas abordadas para aperceber-se de que, sob esta aparente ingenuidade, esconde-se uma profunda experiência da vida quotidiana que confere uma dimensão simbólica determinante à sua obra.  Com efeito, como ressalta Claude Roy, “o que nos toca do nosso folclore não é ele ser a obra “de quem não sabe”, mas, ao contrário, nascer do sofrimento e da alegria, da malícia e do coração daqueles que sabem muito bem.  Eles sabem o que é ter fome ou dor de amor, ir à guerra quando não se queria ou trabalhar com a última das forças.  E estes encontram muito precisamente, ao longo do tempo, palavras insubstituíveis para manifestar sua dor ou sua felicidade, para embalar suas mágoas ou exprimir sua cólera”. Restituindo-se a obra de Patativa de Assaré ao contexto sertanejo, considerando a influência das tradições dos trovadores, dos repentistas, dos violeiros e da literatura de cordel, é forçoso reconhecer na voz do poeta popular o eco dos sofrimentos, das alegrias e das desgraças da população nordestina do sertão: “Poesia telúrica, colhida da terra, dos roçados como se estivesse apanhando feijão, arroz, algodão, ou quebrando milho e arrancando batata e mandioca.  Sua inspiração não é fruto de estudos.  Ela germina dentro de si como a semente nas entranhas da terra”.  Testemunha então de um modo de vida, mas também reivindicação de valores próprios, elaboração de uma identidade.  Por isto, ele é apresentado como o “verdadeiro, autêntico e legítimo intérprete do sertão”.  Com efeito, uma das dimensões mais marcantes da obra de Patativa do Assaré é a preocupação de descrever a vida quotidiana do sertão e, através deste testemunho, protestar o reconhecimento da dignidade, da integridade e da modéstia do camponês sertanejo por oposição à arrogância do cidadão urbano ou do brasileiro do sul.  Parece que a afirmação de sua própria identidade passa mais frequentemente pelo confronto com o outro, como chama atenção o título da compilação: Cante lá que eu canto cá.  Esta última, composta a partir de uma seleção de textos feita pelo próprio autor com a intenção de definir suas preferências literárias, traz o seguinte subtítulo: “Filosofia de um trovador nordestino”.  É, portanto, referindo-nos de uma só vez ao conjunto dos poemas publicados e à vida de Patativa do Assaré que tentaremos depreender as características próprias da sua obra.

Um poeta itinerante

Aos vinte anos, na ocasião de uma visita ao vilarejo de um primo materno, este último, encantado pelas improvisações de Antônio, pediu autorização à sua mãe para que lhe permitisse seguir com ele para o estado do Pará, propondo-se, de sua parte, a auxiliar nas necessidades do jovem e consentindo que este retornasse a seu lar sempre que quisesse. Foi nesta ocasião que ele conheceu o escritor cearense José Carvalho de Brito, que lhe consagrou um capítulo em seu livro intitulado O Matuto cearense e o Caboclo do Pará.  Além disto, este publica os primeiros textos de Antônio Gonçalves da Silva em O Correio do Ceará para o qual ele colaborava.  Estes textos foram acompanhados de um comentário nos quais José Carvalho de Brito comparava a poesia espontânea de Antônio Gonçalves da Silva à pureza do canto da patativa, pássaro do Nordeste.  Foi assim que nasceu o pseudônimo de Patativa.  Pois, para distingui-lo de outros improvisadores, se lhe acrescia o topônimo de sua vila natal:  Assaré.  Patativa do Assaré empreendeu então uma viagem a Belém, em seguida a Macapá onde ficou dois meses.  Julgando a vida relativamente insípida, e não apreciando o fato de deslocar-se sistematicamente por barco para ir de uma casa à outra, decidiu retornar a Belém onde continuou suas improvisações em companhia de outros poetas como Francisco Chapa, Antônio Merêncio e Rufino Galvão.  Ao termo de cinco meses, não resistindo mais aos ataques de saudades, ele decidiu tornar a viver no Ceará.

A consagração oficial

Em seu retorno, José Carvalho de Brito entregou-lhe uma carta de recomendação para obter uma audiência com a Dra. Henriqueta Galeno, filha do poeta Juvenal Galeno. Ele foi recebido com honras dignas de um “poeta de classe, um poeta de cultura, um poeta erudito” e improvisou, em seu salão, acompanhado de sua viola.  De volta a Assaré, retomou os trabalhos do campo aos quais dedicou o resto de sua vida.  Havendo sido notado pelo latinista José Arraes de Alencar, que lhe havia escutado improvisar pela Rádio Araripe, este convoca-o para perguntar porque não publicava seus textos tão “dignos de atenção e próprios de divulgação” .  Patativa do Assaré argumentou que não era mais do que um pobre agricultor e que não dispunha, portanto, de meios de publicar sua obra.  José Arraes de Alencar lhe propõe uma solução:  ele se encarregaria das negociações com o editor Borçoi no Rio de Janeiro e Patativa do Assaré lhe reembolsaria os custos da impressão com o produto da venda dos livros.  É assim que surge a sua primeira compilação  Inspiração nordestina, em 1956.  No prefácio, José Arraes de Alencar sublinha as qualidades particulares aos poetas nordestinos: “Nada arranca aos rapsodos nordestinos a admirável espontaneidade, que é um milagre da inteligência, um inexplicável poder do espírito, faculdade portentosa daqueles homens simples e incultos, de cuja boca prorrompem, em turbilhões, os mais inspirados versos, as trovas mais dolentes e sentimentais, ou épicas estrofes, que entusiasmam e arrebatam”.  Havendo superado seu primeiro receio de não estar em condições de reembolsar, Patativa do Assaré aceitou.  O sucesso da antologia lhe permitiu uma segunda edição em 1966, enriquecida de novos textos:  Cantos de Patativa.  Nesta ocasião, ele passou quatro meses no Rio de Janeiro; entretanto a venda de seus livros se deu essencialmente no Ceará.

A divulgação da obra

Em 1970, o professor José de Figueiredo Filho publicou uma nova coletânea de poemas acompanhada de seus comentários:  O Patativa do Assaré.  Em 1978, a partir da iniciativa do professor Plácido Cidade Nuvens (que trabalha na Fundação do Padre Ibiapina cuja missão é preservar e divulgar a cultura popular do Cariri), foi publicada pela Editora Vozes a compilação Cante lá que eu canto cá, considerada até hoje como a compilação da maturidade.  Em 1988, surge uma nova antologia de textos de Patativa do Assaré, intitulada Ispinho e Fulô sob a direção de Rosemberg Cariry, que compreende uma seleção de textos publicados nos folhetos, jornais, revistas ou discos, produtos de numerosos recitais feitos pelo país.  Mais recentemente, na ocasião de seu octogésimo sexto aniversário, a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará publicou uma coletânea de textos em homenagem ao poeta (Aqui tem coisas) que salienta sua originalidade, sua ancoragem na oralidade, graças à prática da improvisação e à técnica de desafios poéticos: “Métrica, ritmo e  rima fluem com a naturalidade com que enuncia seu canto.  O que ele diz é transcrito para o papel, mas continua fiel aos códigos de transmissão oral.  É como se ele estivesse em permanente peleja, não contra um rival de ofício, que ninguém chegaria à sua estatura, mas com a própria poesia.  Ele é o seu opositor e o seu duplo.  A oralidade não seria decorrente de sua cegueira, não que ele também retoma uma tradição que passa por Homero, Aderaldo e Borges”.  Assim, Patativa do Assaré, enquanto mestre da poesia oral, nunca tentou publicar um texto com seus próprios meios, mas foi sempre publicado pelos admiradores de sua obra.  Da mesma forma, ele continua a ser solicitado tanto pelos amadores quanto pelos especialistas da cultura popular, não somente brasileiros mas também estrangeiros, que se interessam ao mesmo tempo pelo processo de criação e de transmissão desta tradição nordestina.

Patativa do Assaré, um poeta da oralidade

Na condição de herdeiro da tradição nordestina, os primeiros esboços da obra de Patativa do Assaré, improvisações e encomendas, conforme ressaltamos, são marcados pelo aspeto lúdico e comemorativo:  poemas de circunstância, ligados aos acontecimentos sociais, religiosos, em relação direta com o presente, únicos e efêmeros:  festas de Santos, casamentos, aniversários.  Poesia improvisada a partir de um esboço tradicional, poesia repetitiva por suas formas e temas, personalizada em função de seu destinatário.  Poesia declamada ou cantada, ela participa plenamente da vida da comunidade: “age falando, cantando, representando, dançando no meio do povo, nos terreiros das fazendas, nos pátios das igrejas nas noites de “novena”, nas festas tradicionais do ciclo do gado, nos bailes do fim das safras de açúcar, nas salinas festas dos “padroeiros”, potirum, ajudas, bebidas nos barracões amazônicos, espera de “Missa do Galo”; ao ar livre, solta, álacre, sacudida, ao alcance de todas as críticas de uma assistência que entende letra e música, todas as gradações e mudanças do folguedo”.  Convém ressaltar que Patativa do Assaré entregando-se sempre a este gênero de improvisações, uma parte importante da obra não foi nem será, nunca portanto, transcrita.  Este aspecto efêmero e circunstancial é, com efeito, uma das características da poesia oral tradicional.
Quando se descobre a transcrição dos poemas de Patativa do Assaré, o primeiro elemento determinante da oralidade da obra é o recurso sistemático do emprego de uma língua falada, que retoma o estilo e a pronúncia popular, a saber, a utilização do que José Arraes de Alencar definiu como a língua cabocla: “a linguagem sertaneja, de tonalidade própria, fértil em metafonias e metáteses, avessa aos esdrúxulos, com frequente abrandamento ou amolecimento e vocalização de consoantes e grupos consonantais, com a eliminação das letras e fonemas finais”.  Assim, os primeiros versos de Coisas do meu sertão são transcritos conforme seguem:

“Seu dotô que é da cidade                                       
 por   “Senhor Doutor que é da cidade
Tem diproma e posição
Tem diploma e posição
E estudou derne minino                                              
E estudou desde menino
Sem perdê uma lição”
Sem perder uma lição”

A marca oral e regional era tão intrínseca à primeira compilação que foi publicada com um um Elucidário que propunha três esclarecimentos diferentes ao leitor:  uma simples restituição fonética (biête por bilhete ou muié por mulher), uma correspondência referencial (cão por diabo), uma explicação denotativa (tipóia: rede pequena, rede velha).  A necessidade deste “Elucidário” é justificada pela observação de José Arraes de Alencar: “a linguagem cabocla - o linguajar da rude gente sertaneja é tão crivado de erros, de mutilações e acréscimos, de permutas e transposições, que os vocábulos, com frequência, se desfiguram completamente, sendo imprescindível um elucidário para o leitor não habituado a essas formas bárbaras e, ao mesmo tempo, refeitas de típico e singular sabor”[33].  Essas marcas da oralidade confirmam a origem rural do poeta e reforçam o caráter sertanejo do universo descrito. O registo de língua utilizado, a alteração das palavras, o vocabulário regional conferem a estes textos todo o sabor e originalidade da língua do interior das terras, do sertão.
Uma outra marca significativa desta oralidade é a forte presença, muitas vezes desde o título, da função conativa da linguagem: interpelação do ouvinte como Cante lá que eu canto cá, interrogações como Você se lembra?, Seu Dotô me conhece?, destinação como Ao leitor, Aos poetas clássicos, À minha esposa Belinha.  Da mesma forma, os primeiros versos de seus poemas instauram, geralmente, o ritual discursivo, seja como forma de indagação:  Querem saber quem eu sou? Seja sob forma de oração:  Quero que me dê licença para uma história contá.); Seja por uma saudação: Boa noite, home e menino e muié dêste lugá.  (IN, p.27), seja ainda por uma ordem:  Vem cá, Maria Gulora, Escuta, que eu vou agora uma coisa te contá.  Enfim, a invocação do interlocutor abre diversos poemas:  As formas mais utilizadas são Seu Moço e Seu Dotô.  Encontram-se variantes sob a forma de Meu filho querido Meu amigo, Minha gente, Sinhô Dotô (IN, p.203).
A relação de vizinhança está sublinhada pelo emprego do tom familiar: meu, que indica igualmente o enraizamento do poeta a seu meio.  Estes termos de endereçamento traduzem ao mesmo tempo o respeito de uma hierarquia social estrita, em uma sociedade onde a taxa de analfabetismo é elevada.  O poeta, enquanto personagem familiar, é originário do mesmo meio, dirigindo-se em pé de igualdade aos seus interlocutores, seja ao mais rico, ao mais poderoso ou ao mais diplomado, pedindo licença para contar uma história simples à sua maneira.
Último elemento enfim, todavia essencial:  o próprio poeta Patativa do Assaré.  Não havendo jamais escrito texto algum e dotado de uma notável capacidade de memorização    (é capaz de recitar qualquer uma de suas composições, qualquer que seja a sua antiguidade), ele continua a praticar a improvisação em todas as circunstâncias: “A agilidade  do improviso, o inesgotável repertório de situações, as respostas instantâneas às sugestões recebidas acentuam o repentista à capela (…).  Métrica, ritmo e rima fluem com a naturalidade com que enuncia seu canto.  O que ele diz é transcrito para o papel, mas continua fiel aos códigos da transmissão oral”.  É frequente que o poeta, após haver perguntado o nome e algumas informações sobre as pessoas que vêm vê-lo, improvise um pequeno poema no qual traça um retrato de seu visitante, apesar de sua cegueira.  Muito atento durante as discussões, sua habilidade lhe permite apoderar-se da personalidade de seu interlocutor.  A voz permanece para ele o instrumento privilegiado do conhecimento e da comunicação.

Patativa do Assaré, um poeta popular

“Neste pequenino drama
O caro leitor verá
Que dentro de cada homem
Um pouco de ação está
E um só homem sem coragem
No nosso mundo não há”

Esta vontade didática está claramente afirmada na medida em que os cordéis terminam geralmente por uma evocação direta do leitor e por uma lembrança da lição que convém extrair da história escutada.  A última estrofe do cordel acima citado se encerra nestes termos:

“Agora, caro leitor,
Não desaprove o que digo
Todo homem tem coragem
O rico, o pobre e o mendigo
No ponto da hora H
Insulte um, e verá
O mais feroz inimigo”

Os valores morais aos quais se refere Patativa do Assaré não são fundados sobre os princípios teóricos; são ou simples heranças de gerações anteriores, ou fruto direto de uma experiência vivida.  Sua conceção do mundo e sua relação com o outro repousam sobre uma crença que se poderia qualificar de humanista ou de cristã e que corresponde, além disto, à uma realidade cultural nordestina.  Assim a abertura de Brosogó, Militão e o Diabo afirma como ponto de partida os valores seguintes:

“O melhor da nossa vida
É paz, amor e união
E em cada semelhante
A gente vê um irmão”

Raymond  Cantel já havia, por sua vez, sublinhada largamente as intenções moralistas da literatura popular nordestina: “Os sentimentos tradicionais, a família e o amor do próximo são celebrados, mas trata-se, antes de tudo, de ensinar ao sertanejo, sempre distraindo-o, que se ele não souber resistir aos impulsos de seu temperamento, ele terá de suportar as consequências”.  Patativa do Assaré explica a origem de certas composições por estas mesmas razões:  melhor que punir um de seus netos desobedientes ou um menino da vizinhança que lhe havia enganado para melhor roubá-lo, ele optou por recorrer à poesia, com o duplo objetivo de expor publicamente aquele que cometeu uma falta (punição que ele julga mais eficaz do que um acerto de contas cara a cara) e ensinando-o, ao mesmo tempo, o perdão e a boa conduta (Incelência das Cuinhas).  Esta atitude de sabedoria popular constitui um ensinamento moral prático que toma suas referências no quotidiano.
É assim que Patativa do Assaré preenche sua função de educador tanto junto às crianças consideradas por ele como um elemento fundamental “A criança, para mim, é a maior riqueza do mundo”, quanto junto aos seus compatriotas sertanejos:  “Ele (o poeta) deve empregar a sua lira em benefício do povo, em favor do bem comum.  Ele deve empregar a sua poesia numa política em favor do bem comum, uma política que requer os direitos humanos e defende o direito de cada um”.  Em um contexto de miséria e analfabetismo largamente propagado, em outros termos, em meio à ausência de estruturas educativas de base, o poeta popular desempenha um papel importante no despertar da consciência cívica e política, Patativa do Assaré afirma sua solidariedade com a luta dos sertanejos pelo reconhecimento de seus direitos e com a reivindicação de uma reforma agrária que lhe permitiria ter um nível de vida mais digno: “A temática social que domina sua poesia está assentada em aspirações universais de justiça e igualdade, sem qualquer refinamento ideológico” .
Agricultor, ele denuncia a morosidade dos políticos que jamais tentaram eliminar a seca, flagelo maior do Nordeste, que é a origem das constantes migrações de sertanejos: “A seca pertence ao império da natureza, mas pode ser resolvida pelo homem.  Em países de clima igual ou pior que o nosso, o problema de abastecimento de água foi superado.  A diferença aqui é que os donos do poder não se interessam pela solução.  “Eles vivem do problema”, declara Patativa do Assaré.  Na coletânea Cante lá que eu canto cá, ele confere uma posição preponderante à questão da terra e numerosos poemas evocam esta realidade dramática:  O poeta da roça, Eu e o sertão, E coisa do meu sertão, Vida sertaneja, Caboclo roceiro, Cabocla da minha terra, No terreiro da choupana, A terra é natura, O retrato do sertão, Serra de Santana, Minha Serra, Coisas do meu sertão, ABC do Nordeste flagelado.  O poeta, com efeito, ergue não somente uma atestação amarga da realidade quotidiana,

“Minha vida é uma guerra
E duro o meu sofrimento
Sem tê um parmo de terra:
Eu não sei como sustento
A minha grande famia…” 
(Terreiro da Choupana)
mas, reivindica a necessidade de uma reforma agrária:
“A bem do nosso progresso
Quero o apoio do congresso
Sobre uma Reforma Agrária
Que venha por sua vez
Libertar o camponês
Da situação precária”
(Eu quero)

Defendendo, assim, a principal reivindicação dos habitantes do sertão, ele torna-se verdadeiramente a voz do Nordeste e o símbolo de um processo de reconhecimento dos direitos elementares:  “Em todas as grandes lutas sociais e políticas do Ceará, Patativa disse: presente ”.  Este comprometimento, faz com que um certo número de poemas como Triste partida, Lição do Pinto, Vaca Estrela e Boi Fubá tenham se tornado emblemas do povo nordestino, atestando a importância do sucesso que ele alcançou junto aos sertanejos.  Com efeito, Patativa do Assaré passou de uma poesia sentimental e lírica para uma poesia de protesto:  “uma poesia que pede reforma agrária, reclama contra o abandono do nordestino, contra o sistema de meação vigente no campo, contra a seca”.
Patativa do Assaré, uma identidade sertaneja
É verdade que não somente a língua, os personagens e o quotidiano descrito pertencem ao mundo rural sertanejo que viu nascer e viver Patativa do Assaré, mas também as aspirações sociais, as reivindicações políticas e econômicas.  O combate que ele conduz  é aquele do “caboclo roceiro, do camponês sertanejo, da classe matuta”.  Com efeito, o elemento mais tocante da identidade sertaneja é esta evocação constante de uma vida extremamente difícil, de uma terra particularmente hostil, de um universo encerrado sobre si mesmo.  Patativa do Assaré testemunha de forma direta:

“Cá no sertão eu infrento
A fome, a dô e a misera.
P’ra sê poeta divera
Precisa tê sofrimento…”
(Cante lá que eu canto cá),

ou ainda:
“Pois aqui vive o matuto
De ferramento na mão.
A sua comida é sempre
Mio, farinha e fejão”
(Coisas do meu sertão)

Por outro lado, as numerosas expressões colhidas por Plácido Cidade Nuvens em seu estudo intitulado O Universo fascinante do sertão, fazendo referência a um quotidiano brutal, massacrante, absurdo, asfixiante, traduzem esta luta constante do sertanejo: “vida apertada, lida pesada, sina tirana, grande labutação, vida de cativo, correr estreito, tormento do triste agregado, vida mesquinha, rojão seguro, gaio duro, situação crua, quebradeira, horrível peleja, aperreio, grande canseira, meu cativeiro, constante lida, batalha danada, verdadeiro inverno, situação mesquinha”.  Todas estas denominações refletem o abandono, o isolamento, a extrema penúria.  Manifestam a tenacidade, a obstinação, a resistência do sertanejo. A coragem, a paciência, a resistência à fadiga aparecem como atributos fundamentais dos sertanejos.  A poesia cabocla, feita de suor, de fome e de fatiga, e nascida desta miséria, reivindica sua diferença face a poesia de salão:

“Meu verso rastêro, singelo e sem graça,
Não entra na praça, no rico salão,
Meu verso só entra no campo e na roça
Nas pobre paiça, da serra ao sertão”
(O poeta da roça).

Uma das figuras recorrentes desta afirmação de identidade é a oposição:  o sertanejo se determina essencialmente pela diferença.  O poema inaugural de sua obra escrita, Ao leitô, avisa ao leitor que ele vai descobrir uma poesia marcada pela deficiência; a ladainha das negações e das restrições sublinha estilisticamente esta confissão:
“Não vá percurá neste livro singelo
Os cantos mais belo da lira vaidosa,
Nem brio de estrêla, nem moça encantada,
Nem ninho de fada, nem chêro de rosa”.
Em Cante lá que eu canto cá, o poeta sertanejo salienta, sempre por negações anafóricas, a pobreza que o condena ao duro trabalho da terra:
 
“Sou matuto sertanejo
Daquele matuto pobre
Que não tem gado nem quêjo,
Nem ôro, prata nem cobre”  
(Vida sertaneja)

Igualmente, o sistema de negações parece ser a pedra angular de uma perceção desvalorizada de si.  Patativa do Assaré tece, paralelamente a isto, uma rede semântica de conotação negativa.  No poema O poeta da roça, ele se apresenta como “cantô de mão grossa, poeta das brenha, não tenho sabença, meu verso rasteiro, singelo e sem graça”. Em  Seu Dotô me conhece?, ele se define como “o mendigo sem sossego, desgraçado, aquele rocero sem camisa e sem dinhêro”. Em No meu sertão,  Patativa do Assaré salienta sua falta de educação “Inducação eu não tenho”. Em “Aos poetas clássicos”, ele recorda sua origem humilde:  “Sou um caboclo rocêro, sem letra e sem instrução”. Em “O retrato do sertão”, ele recorda que é “poeta de mão calosa, (…) que não conhece cinema, teatro, nem futebol”.  Em “Emigrante nordestino no sul do país”, ele define seus compatriotas como “vagando constantemente, sem roupa, sem lar, sem pão”.  Toda descrição, toda desvalorização se faz sempre em referência ao cidadão urbano, ao letrado, ao rico, ao Sul.
Patativa do Assaré propõe uma visão dicotômica do mundo tanto sobre o plano espacial (sertão / cidade; Nordeste / Sul) quanto sobre o plano temporal (passado / presente).  Na coletânea Cante lá que eu canto cá, esta oposição espacial anunciada desde o título, se traduz por uma constante recordação das diferenças de identidade.  A oposição mundo urbano/mundo rural está construída a partir de diferenças socioculturais e do sistema de valores:  educação e saber contra analfabetismo e ignorância; dinheiro e bem-estar contra pobreza e sofrimento; hipocrisia e vaidade contra honestidade e modéstia.  Patativa do Assaré rejeita o “poeta niversitaro, poeta de cademia de rico vocabularo cheio de mitologia” (Aos poetas clássicos) a quem ele recomenda cantar “a cidade que é sua”, porque ele teve inducação, aprendeu munta ciença, mas das coisa do sertão não tem boa esperiênça” (Cante lá que eu canto cá).  Ao ensino livresco, ele opõe o ensino prático:  “Aqui Deus me ensinou tudo, sem de livro precisá” ou a experiência do sertão (O poeta da roça, Eu e o Sertão, E coisa do meu sertão, Vida sertaneja, Seu Dotô me conhece? O vaqueiro)
Assim como faz com o ensinamento moral, as tomadas de posição de Patativa do Assaré são fundadas sobre a experiência: aquele que não conheceu o sertão na carne, dele não pode falar; a única legitimidade admissível é a de pertencer a seu povo:
 
“Na minha pobre linguage
A minha lira servage
Canto que a minha arma sente
E o meu coração incerra,
As coisa de minha terra
E a vida da minha gente’
(Aos poetas clássicos). 

 Ao dinheiro, ele opõe a felicidade; assim, em “Ser Feliz” ele ressalta que a felicidade “nasceu na simplicidade sem ouro, sem lar nem pão”.  Opõe os bens materiais à riqueza interior: “Dentro da minha pobreza, eu tinha grande riqueza”(A morte de Nana) e fustiga  aqueles que são escravos dos bens materiais em detrimento do respeito aos valores humanos. (A escrava do dinheiro).  Com efeito, o sertanejo confere uma importância maior à qualidade das relações humanas: “O que mais estima e qué, é a paz, a honra e o brio, o carinho de seus fio e a bondade da muié”(Vida sertaneja).
 Este olhar sobre o mundo, numa perspectiva espacial, recupera também uma oposição passado/presente; tradição/modernidade.  A situação do sertanejo obrigado a abandonar sua terra em função da seca, a ir em direção às cidades do litoral, ou então em direção às cidades do Sul, é uma posição delicada, na medida em que ele passa sem transição de um mundo rural à escala humana a um mundo urbano onde impera o anonimato.  O encontro destes dois universos é, não raro, doloroso e acompanhado de um voltar-se para os valores tradicionais.  As cidades, o progresso, a técnica são acusadas de veicular os piores males da civilização:  “Mas a civilização faz coisa que eu acho ruim”(O puxadô de roda).  O sul, em particular, é tido como a sede da corrupção: “Nos centros desconhecidos Depressa vê corrompidos Os seus filhos inocentes, Na populosa cidade De tanta imoralidade E costumes diferentes” (Emigrante nordestino no sul do país).  Assim, o universo descrito por Patativa do Assaré é percebido como um espelho da realidade.  O aspecto quase documental da sua poesia foi salientado por um certo número de críticos, entre os quais Luzanira Rego que afirma que sua obra: “ reflete em seus poemas todo o mundo visionário e fantasmagórico do caboclo nordestino, pintando, em ácidas estrofes, a realidade de uma região, onde o homem e a terra se unem pela força do mesmo abandono”.
O que faz a força e o sabor da poesia de Patativa do Assaré é, sem dúvida, este vínculo indestrutível entre o poeta, o sertão e o público.  O canto só pode nascer da repetição do quotidiano, com seu labor, suas alegrias e sofrimentos.  O canto só pode ser plenamente compreendido por aqueles que comungam desse quotidiano e dessas mesmas experiências.  Testemunhando a afeição com que é tratado pelos habitantes do sertão que vêm visitá-lo e que pedem que lhes recite o seu poema preferido; o sucesso que ele encontra durante suas excursões e, notadamente junto às comunidades sertanejas do Sul; os cordéis escritos em sua homenagem, prova irrefutável de que ele se tornou , por sua vez, um personagem-chave do Panteão nordestino. Patativa do Assaré é um poeta popular que, mesmo se no início cantou o sertão de forma essencialmente nostálgica e lírica, tomou consciência das possibilidades de mudança e do impacto que podia ter a sua voz.  Embora sendo recebido pelos responsáveis políticos e honrado por sua obra, ele não cessa de lhes recordar a realidade de onde ele extraiu a sua principal fonte de inspiração.  Uma de suas maiores preocupações é um futuro melhor para as gerações que virão.  Este objetivo não pode ser alcançado sem passar por uma melhor educação e Patativa do Assaré vê no livro o seu auxiliar indispensável: “É por meio da leitura Que poderá a criatura Na vida desenvolver, O livro é companheiro Mais fiel e verdadeiro Que nos ajuda a vencer”(Ao meu afilhado Cainã).  É notável que aquele que representa hoje a tradição oral da forma mais monumental, sonhe em continuar sua ação através da tradição escrita: sinal dos tempos, evolução das tradições?  Pesquisadores e universitários têm lamentado, há alguns anos, o fim da literatura de cordel, avaliando que este modo de transmissão de conhecimentos não resistirá mais diante dos novos meios de comunicação.  Talvez fosse preciso formular diferentemente o problema diante do lugar ocupado por Patativa do Assaré:  herdeiro de uma forte tradição logrou transformar seu papel e sua mensagem. O que é, sem nenhuma dúvida, o objeto de uma evolução, é a função do poeta popular e não sua arte propriamente dita.

Fonte: Cláudio Portella - Autobiografia de Patativa do Assaré:

Eu, Antônio Gonçalves da Silva, filho de Pedro Gonçalves da Silva, e de Maria Pereira da Silva, nasci aqui, no Sítio denominado Serra de Santana, que dista três léguas da cidade de Assaré. Meu pai, agricultor muito pobre, era possuidor de uma pequena parte de terra, a qual depois de sua morte, foi dividida entre cinco filhos que ficaram, quatro homens e uma mulher. Eu sou o segundo filho. Quando completei oito anos, fiquei órfão de pai e tive que trabalhar muito, ao lado de meu irmão mais velho, para sustentar os mais novos, pois ficamos em completa pobreza. Com a idade de doze anos, frequentei uma escola muito atrasada, na qual passei quatro meses, porém sem interromper muito o trabalho de agricultor. Saí da escola lendo o segundo livro de Felisberto de Carvalho e daquele tempo para cá não frequentei mais escola nenhuma, porém sempre lidando com as letras, quando dispunha de tempo para este fim. Desde muito criança que sou apaixonado pela poesia, onde alguém lia versos, eu tinha que demorar para ouvi-los. De treze a quatorze anos comecei a fazer versinhos que serviam de graça para os serranos, pois o sentido de tais versos era o seguinte: Brincadeiras de noite de São João, testamento do Judá, ataque aos preguiçosos, que deixavam o mato estragar os plantios das roças, etc. Com 16 anos de idade, comprei uma viola e comecei a cantar de improviso, pois naquele tempo eu já improvisava, glosando os motes que os interessados me apresentavam. Nunca quis fazer profissão de minha musa, sempre tenho cantado, glosado e recitado, quando alguém me convida para este fim.
Quando eu estava nos 20 anos de idade, o nosso parente José Alexandre Montoril, que mora no estado do Pará, veio visitar o Assaré, que é seu torrão natal, e ouvindo falar de meus versos, veio à nossa casa e pediu à minha mãe, para que ela deixasse eu ir com ele ao Pará, prometendo custear todas as despesas. Minha mãe, embora muito chorosa, confiou-me ao seu primo, o qual fez o que prometeu, tratando-me como se trata um próprio filho. Chegando ao Pará, aquele parente apresentou-me a José Carvalho, filho de Crato, que era tabelião do 1o. Cartório de Belém. Naquele tempo, José Carvalho estava trabalhando na publicação de seu livro "O matuto Cearense e o Caboclo do Pará", o qual tem um capítulo referente a minha pessoa e o motivo da viagem ao Pará. Passei naquele estado apenas cinco meses, durante os quais não fiz outra coisa, senão cantar ao som da viola com os cantadores que lá encontrei. De volta do Ceará, José Carvalho deu-me uma carta de recomendação, para ser entregue à Dra. Henriqueta Galeno, que recebendo a carta, acolheu-me com muita atenção em seu Salão, onde cantei os motes que me deram.
Quando cheguei na Serra de Santana, continuei na mesma vida de pobre agricultor; depois casei-me com uma parenta e sou hoje pai de uma numerosa família, para quem trabalho na pequena parte de terra que herdei de meu pai. Não tenho tendência política, sou apenas revoltado contra as injustiças que venho notando desde que tomei algum conhecimento das coisas, provenientes talvez da política falsa, que continua fora do programa da verdadeira democracia. Nasci a 5 de março de 1909. Perdi a vista direita, no período da dentição, em consequência da moléstia vulgarmente conhecida por Dor-d ‘olhos. Desde que comecei a trabalhar na agricultura, até hoje, nunca passei um ano sem botar a minha rocazinha, só não plantei roça, no ano em que fui ao Pará. ANTÔNIO GONÇALVES DA SILVA, Patativa do Assaré.
Patativa, dono de uma memória extraordinária, sabia de cor todos os seus mais de mil poemas. Ele não burilava seus versos como os poetas de bancada fazem; seus versos e rimas brotavam em sua cabeça como as plantas brotavam em seu roçado. O poema nascia pron­to e exato, redondo, sem precisar de emendas.

Vaca Estrela e boi Fubá

Compositor (Patativa do Assaré)  - Intérpretes: Luiz Gonzaga e Fagner
Link da canção:

Seu doutô, me dê licença
Pra minha história contá
Hoje eu tô numa terra estranha
E é bem triste o meu pená
Mas já fui muito feliz
Vivendo no meu lugá
Eu tinha cavalo bão
Gostava de campear
Todo dia eu aboiava
Na porteira do currá
Êeeeiaaaa
Êeee vaca Estrela
Ôoooo boi Fubá
Eu sô filho do Nordeste
Não nego meu naturá
Mas uma seca medonha
Me tangeu de lá prá cá
Lá eu tinha meu gadinho
Não é bão nem alembrá
Minha linda vaca Estrela
E o meu belo boi Fubá
Quando era de tardizinha
Eu começava aboiá
Êeeeiaaaa
Êeee vaca Estrela
Ôoooo boi Fubá
Aquela seca medonha
Fez tudo se atrapaiá
Não nasceu capim no campo
Para o gado sustentá
O sertão se esturricô
Fez os açude secá
Morreu minha vaca Estrela
Se acabô meu Boi Fubá
Perdi tudo quanto eu tinha
Nunca mais pude aboiá
Êeeeiaaaa
Êeee vaca Estrela
Ôoooo boi Fubá
Hoje nas terra do Sul
Longe do torrão natá
Quando vejo em minha frente
Uma boiada a passá
As águas corre dos óio
Começo logo a chorá
Lembro da minha vaca Estrela
E do meu boi Fubá
Com sodade do Nordeste
Dá vontade de aboiá
Êeeeiaaaa
Êeee vaca Estrela
Ôoooo boi Fubá

Trabalho e pesquisa de Carlos Leite Ribeiro - Marinha Grande - Portugal

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