Capital do Rio de Janeiro, meados dos anos sessenta.
Francisco atravessa o Passeio
Público, com passos apressados, de segunda a sexta, rumo à editora alemã
onde conseguiu um emprego. No caminho, ele encontra pessoas passeando,
namorando, sentadas nos bancos do parque a alimentar os pombos __ que deram
origem aos tantos pombos que povoam os parques da cidade até hoje.__, outras
leem jornal, aproveitam o sossego, abrigadas do burburinho do centro da cidade.
Francisco segue vaidoso com a sua pasta de documentos debaixo do braço:
primeiro emprego de carteira assinada; quer fazer bonito... Chega cedo à
editora e de lá sai somente quando o patrão dá a ordem de ir embora.
O jovem, alto e magro, parece ter bem mais que seus quinze anos de idade,
com porte de vinte. No retorno para casa, ele atravessa vagarosamente os
portões do parque, a pasta debaixo do braço, ainda que vazia de documentos.
Arredio, espia, pelos cantos dos olhos, o trabalho do lambe-lambe do parque,
batendo retratos de um casal, em seguida, de uma família reunida, e outros
individuais. É assim que deseja o seu: ele sozinho. Vai aguardar o dia do
pagamento do primeiro salário na editora. Francisco não faz ideia de quanto o
lambe-lambe cobra, mas prefere resolver tudo de uma vez só. Indaga o custo e
tira o retrato. Vestirá a sua melhor camisa para a ocasião.
Chega o dia. Céu azul, sol bonito, o Passeio
Público está repleto de visitantes. Francisco para próximo ao lambe-lambe,
que lhe sorri de um modo acolhedor. Mas Francisco, tímido, somente pergunta:
__ O senhor sabe onde fica a Rua
do Senado?
O lambe-lambe franze a testa: E o
rapaz não sabe?
__ Pensei que o jovem trabalhasse
por aqui... Vejo-o passar pelo parque todos os dias!
A fim de acabar com tal aflição,
Francisco engole a timidez e diz quase em tom de súplica:
__ Eu quero tirar um retrato.
__ Voilà! __ Responde o
retratista, apressando-se com os preparativos antes que o jovem desista (o
artista, acostumado ao público, sabe que a extrema inibição do rapaz pode
emendar numa desistência súbita), contudo, não é o que acontece.
__ Tudo pronto! Como quer o seu retrato? De perto ou mais afastado? Quer
uma sugestão? __ Indaga solícito.
__ Eu quero tirar o meu retrato caminhando... __ Francisco balbucia.
__ Como? Não entendi... Em movimento?
__ Quero um retrato meu no trabalho.
__ E onde fica o seu trabalho?
__ ...
__ Ah! Mais oui... É claro... O
jovem quer o retrato em sua tarefa diária a caminho dos afazeres, é isto?
Francisco solta um suspiro de alívio... O retratista entendera. Ainda
bem, pois ele já não se aguenta de tanto acanhamento. Para piorar a situação,
duas moças aguardam a vez para serem atendidas.
__ Fique de lado, e faça a pose de caminhar... Isso! Espere... Que tal
deixar comigo a sua pasta? Não acha mais cômodo?
Francisco novamente encabula. Olhos ao gramado... Decide explicar como
quer o retrato, e se as moças rirem dele, bastará mudar o seu itinerário diário
e jamais repetir aquele trajeto.
__ Quero que a minha pasta apareça no retrato com o símbolo da editora
onde trabalho. É que todo mundo lá no serviço tem um retrato na mesa de
trabalho e eu queria um meu... Eu trabalhando também...
__ Mais oui! Mas claro, meu
jovem! Corretíssimo! Basta agir como se estivesse caminhando... Mas não
caminhe! Segure a pasta como de costume... Isso... Très bien! Isso... Você está muito sério, mas está muito bom
assim... Levante só mais um pouco a sua cabeça, sim? Voilà! Vamos ver como ficou... Aguarde só um instante!
O jovem sente ímpetos de correr dali, mas o retrato, o retrato...
Francisco suporta bravamente a espera. É de dar dó tamanho acanhamento. Ele
aguarda a chapa ser revelada com a ansiedade de se ver e por saber o custo
daquele empreendimento no qual se metera. Já está quase descorado, não rubro
porque Francisco é mulato, e o tempo de espera parece-lhe absurdamente longo,
mas não é.
__ Aqui está! Veja se agradou __ Inquire o artista.
__ Quanto custa?
__ Mas jovem, olhe para o seu retrato primeiro!
Francisco olha, olha... E vê __ Está
bom! __ Reflete. É ele mesmo, sem tirar nem pôr. Dá para ver, pelo retrato,
que ele trabalha. Sua pasta ali, debaixo do braço, com o símbolo da editora.
Tudo certinho... Perfeitos os detalhes da camisa, de seu rosto. Daí, Francisco
não consegue mais reparar nos detalhes do retrato porque seus olhos molham,
para desespero seu, que não deseja chamar ainda mais a atenção.
__ Obrigado, senhor retratista! Este é o meu primeiro retrato.
__ Sim, seu retrato. Um retrato de você trabalhando!
__ É. Sou eu mesmo!
__ O jovem quer dizer que não havia tirado um retrato seu ainda?
__ ...
__ Sim?
__ Quanto devo ao senhor?
__ Meu jovem, esse era um teste. Eu não vou cobrar nada. Da próxima vez,
quando você tirar outro retrato comigo, eu te cobro. O lambe-lambe,
intimamente, recusa-se a crer em sua generosidade despropositada. Ele precisa
receber pelo seu trabalho, mas resolve premiar o humilde rapaz após a
demonstração tão espontânea de apreço por sua arte.
Francisco agradece apressado. Mais apressado ainda, segue para casa. Quer
mostrar à mãe o retrato. Ele em seu trabalho.
__ Ué, Chiquinho! Mas porque você tirou o retrato caminhando? Foi de
surpresa que o lambe-lambe bateu a fotografia?
__ Não, mãe... Eu escolhi assim.
__ Mas parece que ele pegou você caminhando, passando por lá... Por que
você não fez uma pose para o retrato, filho?
__ ...
A mãe atenua. Compreende o acanhamento do filho, temendo haver errado em
seu primeiro retrato:
__ Chiquinho, você ficou bonito, sabe?
Francisco sorri,
retira o salário do bolso e o coloca em cima da mesa. Só então ele começa a
jantar. A mãe olha novamente para o retrato. O filho está mesmo bonito no
retrato... Ali, diante dela, mais bonito ainda.
Comentários
E AGRADÁVEL DE LER.
PAMELA ANDRADE
gostosa leitura...
gostosa leitura...
Nédia.
Marta Mendonça
João Juarez da Silva
Achei muito singelo e sensível.Gostei da maneira como você retratou a insegurança e a timidez do fotografado.
Regina Borsa Samapaio
Eu agradeço a leitura e o retorno, com suas impressões sobre o texto. Bem, Vinícius, o Poetinha, já dizia "haver tanta beleza na tristeza"; creio haver beleza na timidez também. Nem sempre valorizada, mas o recato seduz, decerto.
Um abraço carinhoso, muita paz!
E que belo exemplo da generosidade que nosso povo sabe ter na hora certa. Parabéns Cris!
Abraços da Bilá Bernardes
Um abraço carinhoso :)