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A despedida (Prosa Caipira) - Luciano Marques

- Desfaz as trouxa! Descarrega os trem, Maria Muié! Embora é que nóis num vai mais! A vida já foi dura, outras vez, nem por isso nóis desanimô; nóis cresceu! A vida é boa inté quando é ruim; ela ensina! O pobrema é que nóis semo difícil de aceitá, que as coisa acontece porque precisa; num é pra castigá. Carece memo é de tê carma, num mora dessa, num pode precipitá!

- Mas o que deu nocê, Ozório? Tá intornâno um mora dessa?! Ontem memo nóis margô chorá, alembrâno da probremada... As terra tá vendida, quase mês já! Arrumêmo casa na cidade. Até banhêro no quarto tem! Num tem pra que nóis ficá aqui mais! Aceita as coisa! É mio! Num foi ocê memo que falô que nóis tem que aceitá?! Dispois, quando ocê oiá pra trás, vai inté agradecê! Confia na tua Maria, Ozório! Essa noite, garrei rezá pra Nossa Senhora! Sei que ela já tá abrino os caminho, tá passano na frente, pra móde mostrá o que fô mió. Ocê num tem fé?! Num credita em Deus não, uai?!  
- Óiquí, Maria: pra começo de prosa, num tomei pinga hoje não, viu?! Tomei foi corage: co – ra –ge! E creditá, eu credito tamém, - e muito inté -, maisi... Carma! Carma que as coisa vai miorá! Essa noite memo, num preguei os óio. Matutei, matutei... Matutei demais, sô! Ocê sabe que, matutano, a gente vai vêno que as coisa num é do jeito que nóis pensa nã? Ói procê vê: tem cabôco que tá muito pior que nóis! Num vê, cumpade Zé Quito? Inviuvô! Tá que num guenta de tantristeza, o pobre! Ô homi bão, viu! Bão inté pra sofrê: sofre quetim, quetim... Nóis inda é dois, Maria: ocê mais eu. Ocê queria sê o compade Zé Quito, Maria Muié?!

- Nem cumpade Zé Quito, nem cumade Maria. Sê bobo, sô! A cumade tá morta, uai! Deus me livre! Guarde! Maisi... Óiquí: que que tem a vê a viuvez do cumpade com a nossa prosa, homi? Ficá garrado, que tem gente pior que nóis, num vai miorá a situação não! Vê lá, cumpade Tonho: homi de paciência, bão de conseiá, paziguá briga... Tá lá, agora, esquecido, largado no asilo. Coitado! Os filho nem visitá vai. Perdeu tudo! E por quê? Farta de corage de vendê as terra na hora que precisava, antes dos homi í lá e tomá. Essa corage que ocê tomô, pra mode falá bobage desse jeito? Sabe, Osório, tô sofrêno iguar ocê memo! Tamém tenho coisa boa pra alembrá, mas, se o trem piorá... cumé que faz?!
- Carma, Maria Muié! Carma! Deus é maior que o pobrema nosso tudo! Ele é bão! Vai ajudá! Ói ocê memo: única filha muié, dos Maria Ferrêra: Zé Maria, Nicolar Maria, Gimiro Maria, Bastião Maria e Maria Maria, ocê, a minha Maria Muié! Alembra, nos tempo de sortêra? Não alembra não? Dispois que tua mãe, dona Severina, santa muié, morreu, e ocê, mininota ainda, passô cuidá dos trem tudo... e daquele bando de homi: teus irmão mais teu pai, enviuvado de pouco, coitado! Alembrô? Se tem muié, nesse mundo, que carece de tê alegria, essa muié é ocê, Maria! Entendo a gastura tua, mas as coisa vai miorá, e miorá pra mió!
- Ê, Osório, ocê num tem jeito memo! O trem pegâno fogo e ocê, espirutiado, alembrâno das coisa do tempo do onça... Tem dó, homi! Então ocê acha que o que tá ruim num pó piorá? Vai nessa toada procê vê, vai! Já viu água de rio disviá de pedra? Ela passa é em riba do que tivé na frente; num escói lugar mio não! Óiqui: ocê trata de fincá esses pé no chão! Vai lá, pega as trouxa, no quarto, e bota aqui no arpendre, pra quando seu Roque, taxista, chegá, ponhá tudo lá no carro!
- Óiqui, Maria, num passei a noite intêra disadurmido à toa não! Matutei inté me duê os miôlo! Pra falá verdade, verdade memo, acho que num costumo mais fora daqui não! A cidade inté cabe intera aqui, na roça, mas, a roça, num cabe lá na cidade não! Vô senti farta demais daqui! E tem outra coisa: onde é que nóis vai arrumá outro rio desse, que passa na nossa pordacozinha? E os passarinho, que vem, todo dia, comê com as galinha as sobra que nóis faz sobrá? E os boi de carro, vai levá? As vaca tudo? E o sor, deitano o capim? E esse chêro das flor? E as flor? E o céu estrelado, aqui, na roça? Onde é que nóis vai ponha isso tudo, lá na cidade? É muito, muito memo, prá guardá só nas memória dos óio!
- Ô, Ozório! Assim eu vô garra chorá de novo, homi! Ocê tem que entendê: o mió que nóis faz, agora, é aceitá! Vamo começá tudo de novo, vida nova na cidade, onde inté já arrumemo lugar pra ficá. Eu sei: a despidida é um trem difícil! Mas nóis não semo mais criança: já tâmo veio, Ozório! Esse sor, que deita o capim, já queimô muito nóis tamém. O tempo passo e levô a mocidade que nóis tinha! Agora, tá na hora de discansá, meu veio! Vem, me dá tua mão, vamo junto lá buscá nossas trouxa, que o taxi do Roque cabô de chegá.

Comentários

Anônimo disse…
eu carecia de le um troço bom...rsssss

gostei muito viu Luciano Marques?

Jonas Ribeiro
Anônimo disse…
nunca tinha lido um texto de prosa caipira, achei muito legal a maneira como tudo é feito.... achei difícil também, afinal de contas escrever usando as palavras que os caipiras estão acostumados não é fácil, quando não se é um deles..... muito original...

Adriana Ribeirinha - Pernambuco
Luciano Marques disse…
Nóis "semo" tudo caipira, comade Adriana Ribeirinha!

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