I
Ouço
a Jovem Pan. “VOCÊ PERGUNTA, E SEU ARTISTA PREFERIDO RESPONDE.” Isso ecoa em mim... Demais pra
meu coração!
Assim tentei. Roberto
Carlos ainda não me respondeu.
De vez em quando, roubo-lhe uma ou outra frase. Frases
lindas! Qualquer um gostaria de tê-las dito a alguém um dia (não resisto, tenho
mesmo que roubá-las – se não, como fazer pra conseguir a expressão ideal?)
Lindas! Minhas também.
Num dia lindo uma tarde linda, ao seu ouvido meu ouvido
olvido... de alguém... continuo ouvindo... Roberto Carlos: “No seu corpo é que
encontro depois do amor o descanso e essa paz infinita...”
— Alguém vem vindo pra mim arranjado por Deus, este meu
Deus que não me falha nunca... “No seu corpo minhas mãos se deslizam e se
firmam numa curva mais bonita... No seu corpo meu momento é mais perfeito...”
Ouço Roberto Carlos. Se o Rei soubesse o que faz pelas
pessoas, principalmente por mim – já me livrou de várias fantasias de
assassinato (eu própria... primeiro marido... segundo marido... ). Indecisão.
Pra que tanta violência? Desisti sempre. “E só me encontro se me perco no seu
corpo...” — mais uma vez, mais uma música, mais um poema, mais uma promessa de
amor, mais um amor, que ninguém fala melhor de amor – porque, de amor. Pra que
falar de outra coisa? O amor é a mola de tudo, o elo, a base, a renda, o
limite, o princípio, o meio, o fim. Inclusive.
II
Da vida, o palhaço... a vida na rua, o palhaço na parede; e
a vida do palhaço na parede. Amo meus quadros. Mas eu não pinto. Apenas vejo e
ouço... Roberto Carlos.
III
—
E o que você fará caso Roberto Carlos a decepcione?
—
Nosso amor é eterno. Jamais se romperá mesmo após nossa morte.
A
preparação nubente para a ida ao centésimo show do amor eterno — cabeleireiro
(em casa não fica bem pintado), manicure, pedicure, sobrancelhas retificadas,
sorriso bem escovado, sapato adequado para a corrida até a beirinha do palco,
mais uma rosa sonhada, vermelha? serviria também a branca — uma variável
possível: a vermelha, o nosso amor; a branca, a paz que o amor nos reserva.
Caçada
à cadeira T30, bem lateralmente colocada, envelope azul-paris
cuidadosansiosamente adquirido meticulosamente assente pelas nádegas
protetoras:
— Não
posso me levantar pra aplaudi-lo, como fazer se o envelope cair e sumir? Não
pode cair! Não pode sumir!
Aplausos
contidos, choro convulsivo... “Nosso amor é assim, pra você e pra mim, como
manda a receita”... Envelope amarrotado, enfim. Roberto Carlos em-canta
dezessete pérolas. E...
“Jesus
Cristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui...” corrida desenfreada ao
palco, sapato ainda nos pés, sutian sutentando seios, duas amostras do Emoções,
propaganda do Projeto Emoçõesemaltomar e o celular arremessado das alças já
cansadas pelos seios saltitantes arfantes quando erguido o envelope com o
acróstico ao reiamado, flutuante como uma flâmula pelos ares, azul-paris
apropriadamente escolhido, faltante o royal, olhos vacilantes no-rei-no-envelope,
semínima, sonhos desfeitos aos poucos?, decepção desassumida inaceita, mas
impressa no rosto visitado pelos olhos sem sentimento do seu-rei já homúnculo
em seu peito — ele não pegou o acróstico.
Como
assumir com a amiga a decepção que o rei lhe impusera, embora desplanejada,
desproposital... provisória?
—
O show foi bom?
—
Ele pegou o envelope? (Antevia o bombardeio invasor.)
—
Como é que foi? (Tentaria encarar todas, respirar para responder.)
Balbúrdia
inquisidora, tortura do próprio coração, mente exausta pelo argumento “ele não
podia, ele não viu nada escrito no envelope, ele estava cansado, ele... ele...”
Um choro uterino substitui a euforia a ansiedade aquela dor de amor que dá no
peito a histeria gritante. Decididamente, conspira: — Gente, foi lindo demais,
maravilhoso como sempre.
—
Ele pegou? Pegou o envelope?
Sem
mais conseguir suportar a frustração, assente:
—
Pegou, lógico! Pegou e entregou para o auxiliar de palco o guardar, porque umas
fãs lhe levaram bonecas, uma imagem de Nossa Senhora. Ele ganha tanta coisa!
Tomara que ele leia! Já pensou?!...
Mascara-se
com um sorriso e converge logo para outros temas: a viagem das amigas a Buenos
Aires, a comemoração de seu aniversário em Juiz de Fora ou Leopoldina, que vai
ser decidida depois, a invasão de privacidade do Nota Legal que rechaça mais um
pouco a sociedade...
—
Por quê? Por que Roberto Carlos não pegou meu envelope? Será que ele não gostou
do azul-paris? Estava amarrotado demais? Não sou uma fã como outra qualquer?
Enfrentando
lágrimas hemorrágicas, só, animal triste, grita o acróstico convulsiva, ecoante,
para que ele, mesmo não querendo, escutasse cada verso e soubesse afinal de seu
amor eterno:
ACRÓSTICO
Rei
romântico
Obra-prima
do amor eterno
Brasa
para a chama que nos aquece
Elo
premeditado
Resíduo
de carícias e
Tesouro
Ornado
de bem-querer
Carinhosamante
Amanteamado
Reinando
em
Lustros
vários de arteamar intensos
Ostentando
longamente
Saudades
nostálgicas por onde quer que passe.
Assina? Não assina?
(Hilda Curcio)
Seca as
lágrimas, seminimamente, fera ferida que é, para sempre.
IV
E o amor foi embora como um menino manhoso. Medo? Do amor?
Não era. Não o do Roberto Carlos, que foi amor de verdade. É.
V
Decidi-me agora — não vou desabraçar você nem devolver o
abraço que lhe roubei, que é meu.
Não existe amor do passado. Ou é ou não é amor. Tem que ser
amor. Eterno. Imenso.
VI
Então, resolvi mandar-lhe o acróstico via e-mail. Por que o
receio? Ele responderia, mais dia menos dia, responderia. Ainda que com suas
canções.
Roberto Carlos, você pode me convencer de que só os homens
que não valem a pena trocam uma mulher de cinquenta por uma de vinte?
Com a música “Não tire esses óculos, use e abuse dos
óculos!” você me protegeu e me ressuscitou (era feia de óculos, mas me
aceitei). Quando perguntou: “Quem foi que disse que tem que ser magra pra ser formosa?”
(ou terá sido “gostosa”?) Ah! Quanto alento! De novo, a mesma sensação de
proteção. Era eu ressuscitada. Ainda, em louvação à mulher-eu-de-quarenta-anos:
“Olhar de quem sabe um pouco da vida. Conhece o amor...” Nunca foi tão fácil
fazer quarenta anos. Mas, e agora? Faço cinquenta ou espero outra música?
Por que você também
não convence as cabeleireiras de que nossos cabelos brancos podem ser pintados
de uma só cor? Que não precisam de mechas! E não se esqueça, meu Rei, convença
os homens de cinquenta a não nos trocarem por meninas de vinte... Ensine-os a
não serem tão cruéis conosco, Roberto Carlos. É o pedido de uma fã ardorosa;
amante à moda antiga, sem amante, mas... à espera de.
VII
Como ele ainda não se pronunciou, busquei dentro de mim uma
alegria, uma única que fosse. Não encontrando nada, busquei o medo, o cansaço,
a dor, a solidão, encontrados todos juntos calados quedos também de tanto
ficarem no escuro de mim, pra extirpá-los de uma só vez, apesar de não ter
ainda a nova proteção do Rei. Aos cinquenta anos, quando não se é feliz, tem-se
a impressão de que a vida nos foi roubada, ou nos roubou algo ela mesma.
Continuo ouvindo Roberto Carlos: “Eu cheguei em frente ao
portão, meu cachorro me sorriu latindo... “. E senti uma tremenda inveja desse
cachorro, que sorri e não liga a mínima pra mim, não liga a mínima pra nada,
constato — ele consegue se lamber sozinho, não precisa de ninguém, ele se
basta. Sua solidão é tolerada sem dramas nem traumas; depois, o Roberto Carlos
sempre volta pra ele. Também, com o gato. Inveja imensa até dos gatos. E eu? Só
ouço Roberto Carlos, só no rádio. Sem sua resposta. Sou uma fã sem resposta.
Ardorosa. Chorosa. Gostosa? Formosa?
Como é que eu
poderia crer que o Rei falaria comigo de verdade? Será que eu ouvi bem? Ouvi na
rádio – era manhã, e eu tomava sol. Minha cabeça teria esquentado muito ao sol?
Com gesto e sorriso residuais, estagnados, saio do sol
(preciso de água, alimento, ar, e muito de você que Deus está mandando).
Novamente “... nossas curvas se acham, nossas formas se
encaixam, na medida perfeita!” É agora! Tem que ser agora, ou nunca! (...)
“Cada parte de nós, tem a forma ideal, quando juntas estão, coincidência total,
do côncavo e do convexo...” Ah! Roberto Carlos... Cadê minha resposta? Devo esperar:
ouvirei toda a canção. Quem sabe... não haverá minha resposta... antes que eu
mesma eternize minha dor, meu sofrimento?
VIII
“Amigos ouvintes, são exatamente onze horas desta manhã de
sexta-feira.” A voz do locutor desavisado interrompe Roberto Carlos.
Terei de ir pra cama sozinha novamente. Ele
não recebeu o acróstico.
Comentários
Beto
Ariana Melo