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Almeida Fischer Centenário ** Anderson Braga Horta

Almeida Fischer Centenário 

Anderson Braga Horta

O menino Oswaldo, nascido em Piracicaba, próspera cidade do interior de São Paulo, aos 22 de dezembro de 1916, parecia destinado aos trabalhos da terra. O filho do enfermeiro Artur Fischer e da modista Rita de Almeida Fischer, tendo cursado o primário no Grupo Escolar Barão do Rio Branco e o ginásio em estabelecimento anexo à Escola Normal Oficial (que mais tarde assumiu o nome de outro ilustre piracicabano, o educador, jornalista e escritor Sud Mennucci), ingressou na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz. Aí frequentou o curso de Agronomia até o 2.º  ano, quando saiu da cidade natal rumo ao Rio de Janeiro, onde se lhe descortinaria campo mais largo para a verdadeira vocação: o jornalismo e a literatura.

Essa vocação já era manifesta no jovem estudante, que publicava crônicas e artigos na Gazeta de Piracicaba e no Jornal de Piracicaba e cedo transcenderia os limites da origem para colaborar em O Malho, Clima e outras revistas cariocas e paulistanas. Também precocemente frutificou o espírito empreendedor na fundação do jornalzinho O Escolar (com o estímulo do professor Thales de Andrade, celebrado historiador e escritor infanto-juvenil, conforme depoimento de Samuel Pfromm Netto, em seu Dicionário de Piracicabanos). Fundou ainda, no âmbito nativo, o jornal A Cidade e participou na criação da revista Garota.
Em fins de 1943, com os seus 27 anos, portanto, desembarcou no Rio de Janeiro com uma carta de Mário Neme (o Dr. Salim que publicava na Gazeta de Piracicaba) apresentando-o ao já prestigioso autor de O Conde e o Passarinho, o cronista Rubem Braga. Este, por sua vez, o encaminhou a Carlos Lacerda, que, segundo Luiz Carlos Guimarães da Costa (em sua preciosa História da Literatura Brasiliense), lhe deu o primeiro emprego, na Agência Meridional, dos Diários Associados. No Rio, passaria por diversas redações: as revistas Dom Casmurro e Vanguarda, O Jornal, Correio da Manhã, Diário Carioca, Jornal do Brasil.
Foi uma época de grandes definições, essa. Além da confirmação no jornalismo, formou-se em Direito, em 1948, pela Faculdade do Rio de Janeiro. No ano anterior, ingressara no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, mediante concurso público em que obtivera o primeiro lugar. Cumpriria no IBGE uma carreira de trinta anos, vindo a se aposentar como Assistente Jurídico do Ministério da Educação e Cultura. Passo importantíssimo para o jornalista e homem de livros, foi cofundador do suplemento Letras e Artes, do jornal A Manhã, secretariando-o até 1950 e, daí em diante, dirigindo-o até a derradeira edição, em 1954. Em 1947 estréia em livro com Horizontes Noturnos (Editora A Noite), seguido de O Homem de Duas Cabeças (Edições Oásis, 1950; reeditado em 1953 e 1971; vencedor do Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras) e A Ilha e Outros Contos (Os Cadernos de Cultura, Ministério da Educação e Saúde, 1953). Entre 1949 e 1960, participou em importantes antologias, como a Antologia de Contos de Novos Escritores do Brasil (Edição Revista Branca, de Saldanha Coelho), a Antologia Italiana per la Scuola Media, de Virgilio Casale e Domenico Di Maggio, a Antologia do Conto Paulista, de João Pacheco, e O Conto da Vida Burocrática, de R. Magalhães Júnior.
Já era Almeida Fischer jornalista e escritor vitorioso quando se transferiu para Brasília, em fins de 1960 (com 44 anos, portanto). Não veio para tentar a vida, como se diz. Trazia já todos esses louros, mais uma carreira bem-sucedida no serviço público. Mas em Brasília consolidou sua obra de narrador, realizou sua vocação para a crítica, exerceu frutuosamente cargos de importância na área da produção artístico-literária, realizou eventos, criou periódicos e entidades, teceu, enfim, uma teia cultural que deu à Cidade um amadurecimento e uma feição espiritual digna de sua condição de nova e moderna capital do País.
Superintendente da Fundação Cultural do Distrito Federal, instituiu a Semana Nacional do Escritor, depois Encontro Nacional de Escritores, que reunia anualmente em Brasília os maiores nomes do País. Eram encontros fecundos, com palestras e debates (alguns acirradíssimos...), animados, na parte social, por excelentes coquetéis de confraternização. (Sobre esses encontros, veremos, daqui a pouco, um interessante depoimento póstumo de Fischer.) Fomentou as artes plásticas, por meio do Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, que reunia os mais destacados artistas nacionais.
Na área jornalística, saudoso talvez dos tempos do Letras e Artes, associou-se a Sousa Neto para organizar páginas dedicadas às letras nos jornais Crítica e Diário do Brasil. No Diário de Brasília foi responsável pelo suplemento Enfoque; no BsB Brasil, depois BsB Diário, pelo suplemento Letras. Com Domingos Carvalho da Silva e Afonso Félix de Sousa organiza para a Thesaurus, de Victor Alegria, a revista Compromisso.
Deu-nos a antologia Contistas de Brasília, a primeira do gênero na nova capital, lançada pela Livraria Dom Bosco Editora, em 1965. Para a Horizonte, de Geraldo Vasconcelos, criou e dirigiu a série 10 Contos Escolhidos.
Espírito associativo, comandou a fundação da ANE — Associação Nacional de Escritores (em cujo edifício-sede, que ostenta o seu nome, lhe prestamos este preito). Nascida em 21 de abril de 1963, no espaço da Livraria Dom Bosco, de Francisco Scartezini Filho (na SQS 108), é a mais antiga sociedade literária de Brasília, e em seu seio se geraram as mais importantes das que se lhe seguiram. Fischer foi, de início, seu vice-presidente, e presidente de 1969 a 1979. Liderou a criação da Academia Brasiliense de Letras, cuja data de fundação pode ser fixada em 8 de março de 1964; e, em 25 de julho de 1987, juntamente com José Geraldo, a da Academia de Letras do Brasil. Apoiou a da Associação Profissional dos Escritores do Distrito Federal, passo exigido para a constituição do sindicato, em que afinal se transformou.
Lecionou Literatura Brasileira na UnB e, além dessa disciplina, Teoria da Literatura no Centro Universitário de Brasília, o atual UniCEUB. Em 1972 a Universidade do Ceará conferiu-lhe a Medalha do Mérito Cultural. Foi sócio honorário da Academia de Paestum, de Salerno (Itália). Fez em Madri, em 1973, com bolsa da OEA e do governo espanhol, curso de produção e comercialização do livro. Chefiou delegação de nosso país em simpósio luso-brasileiro sobre a indústria do livro, em Lisboa. Em 1979 e 1980 dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros em Rosário, Argentina. Postumamente, em1997, foi-lhe outorgado o título de Cidadão de Brasília, por iniciativa do Deputado Distrital Geraldo Magela. Cumulando a homenagem, a Câmara Legislativa se deslocou de sua sede para realizar a solenidade no Edifício Almeida Fischer.

O Narrador

De Brasília, Almeida Fischer retoma sua contística publicando Nova Luz ao Longe, pela Martins, de São Paulo, em 1965. O livro recebeu o Prêmio de Ficção Prefeitura do Distrito Federal desse ano, e teve segunda edição pela brasiliense Ebrasa, em convênio com o Instituto Nacional do Livro, em 1971. Nesse mesmo ano, com o mesmo selo, sai a terceira edição d’O Homem de Duas Cabeças. Em 1980 os seus 10 Contos Escolhidos (Horizonte/INL). E em 1988, coroando os seus trabalhos no gênero, Memorial de Inverno, pela Thesaurus.
As safras brasilienses são fecundas. Em 1970 o narrador estréia no romance com O Rosto Perdido (Ebrasa), que terá segunda edição, carioca (Record/INL), em 1978, e terceira pela Thesaurus (Brasília, 1985). No ano de sua morte, em 1991, sai a novela De Repente a Primavera, com a marca Signo Editora. Deixa um romance inédito, A Repressora, do qual se dará notícia adiante.
Dezenas de escritores de vulto opinaram sobre esses livros (menciono, quase aleatoriamente, Dinah Silveira de Queiroz, Fausto Cunha, Álvaro Lins, Lygia Fagundes Teles, Ledo Ivo, João Gaspar Simões...); não há como transcrever algo de cada um sem levar ao fastio. Limitar-me-ei a uns poucos, não aleatoriamente, é claro, mas também não me atendo à importância atribuída aos comentaristas, antes procurando produzir uma espécie de micropanorama do que na obra fischeriana têm apontado.
Caio Porfírio Carneiro, não sem antes afirmar que Fischer, “escritor de talento e inegáveis méritos .... batalhou mais pelos outros do que para si mesmo”, diz em artigo recente, para o Linguagem Viva (Piracicaba, março de 2015):

Além dos volumes onde reuniu seus ensaios e trabalhos críticos, deixou uma obra de ficção da melhor qualidade. Livros como O Rosto Perdido, De Repente a Primavera e Memorial de Inverno, para só citar estes, nada devem aos que de melhor fizeram e fazem as nossas letras. Senhor de um estilo elegante, sóbrio, filigranado de sutis achados, rico de nuances harmoniosas, que dão bem a medida do quanto o idioma português, com as nossas particularidades, pode se vestir artisticamente, se é um mestre e um bom cinzelador quem com ele lida.

No Correio Paulistano (advirto que nem sempre poderei citar as datas) Nuto Sant’Anna aplaude “o autêntico contador de histórias, servido por grandes qualidades artísticas”, destacando em seus contos “o equilíbrio, a interpretação psicológica, a maliciosa observação das coisas e dos fatos”.
De acordo com Stefan Baciu, no Letras e Artes (21.9.1952), ele escreve “sem pressa, com um perfeito conhecimento de todos os efeitos, dominando a difícil arte de contar com uma grande segurança”.
Ainda no Letras e Artes (20.5.1951), depõe Temístocles Linhares:

Não seria nenhum exagero .... atribuir à anarquia presente da linguagem entre nós a escassez de bons contistas. Isto é, de contistas que escrevam contos semelhantes a seres vivos, com sangue nas veias, mas também despidos de impulsões caóticas, que só servem para estabelecer uma espécie de divórcio entre a vida e a literatura.
É exato que existem as exceções. E é a propósito de uma delas, seja dito logo, que estão nascendo estes comentários.
Se há alguém que tenha consciência da responsabilidade de contista, repousando toda ela na composição e na linguagem, sem lhe emprestar nenhuma estreiteza gramatical, este alguém é Almeida Fischer.

 “O contista”, pontifica Sérgio Milliet, “se exprime sempre da maneira mais adequada ao assunto, chegando em contos de fundo trágico, como o do ‘Rosto’, a uma densidade rara” (O Estado de S. Paulo).
Joaquim Ribeiro (O Jornal) vê em Horizontes Noturnos “um esplêndido espólio de tipologia humana”.
Das páginas da revista Ausonia, n.º 32 (Siena, Itália, março de 1949), vem a palavra de Luigi Fiorentino: “Osservatore attento della vita e delle passioni degli uomini, spiritualizza le sue creature con forza della fantasia”, com uma “impressionante originalità .... che, senza troppo concedere all’analisi psicologica, si risolve con l’ala della poesia”.
Segundo Reynaldo Bairão, na Revista Branca, “contos como ‘O Mostrengo de Vila Maria’, como ‘O Rosto’, e como ‘A Solteirona’, poderiam constar de qualquer antologia, como pequenas obras-primas que são”.
Antônio D’Elia, a propósito de “O Mastro” (A Ilha e Outros Contos), afirma em A Manhã de 1.º de junho de 1954:

O que perturba em Almeida Fischer não é o seu surrealismo neste conto e os seus mergulhos introspectivos em outros da coletânea. A perturbação mais forte vem do contraste entre as situações psicologicamente “violentas” e irreais (pelo menos inverossímeis) e a sua linguagem simples, muitas vezes de composição narrativa objetivíssima.

Em harmonia com isso penso que está o que diz Teresinha Pereira em Vida Universitaria (México, 16.8.1973):

El estilo de los cuentos del escritor brasileño Almeida Fischer representa un caso especial en la nueva narrativa latino americana. Mucho tiempo antes del desarrollo en la América hispánica de la corriente literaria llamada "realismo mágico", Almeida Fischer ya había adoptado en su obra la inclusión de la magia como un elemento enriquecedor del tema de la ficción y como un medio de resaltar las posibilidades de invención en los sucesos ordinarios de la vida cotidiana.

Pela mão desses escritores damos um matizado passeio pela ficção de Almeida Fischer e organizamos na mente um interessante resumo de sua imaginação e de seu estilo.
Enumero, assumindo o risco de omissão, os sócios da ANE que sobre nosso autor escreveram: Dinah Silveira de Queiroz (A Manhã, Rio, 5.4.1951), Fontes de Alencar, em Kalevala e Outros Temas, Thesaurus, 2014; Fabio de Sousa Coutinho, em Elogio de Fernando Mendes Vianna (discurso de posse na Academia de Letras do Brasil), Thesaurus, Brasília, 2010; Danilo Gomes, em Escritores Brasileiros ao Vivo, vol. 1, Comunicação, Belo Horizonte, 1979; Antônio Roberval Miketen, em Enigma e Realidade, Thesaurus, 1983; José Geraldo, em Ensaios Literários, Thesaurus, 2005; Domingos Carvalho da Silva, apresentando a primeira série de O Áspero Ofício e Nova Luz ao Longe; Alan Viggiano, em Meninos, Eu Li!, André Quicé, 2006; Napoleão Valadares, no Dicionário dos Escritores de Brasília, idem, 1994, 2003 e 2012; Wilson Pereira, em A Literatura Brasiliense, Universa, 1999, e o já mencionado Luiz Carlos Guimarães da Costa (História da Literatura Brasiliense, Thesaurus, 2005). Heitor Martins, a par de “Almeida Fischer, em Brasília, entre o Real e o Fantástico”, estudo introdutório a 10 Contos Escolhidos (Horizonte, 1980), levanta-lhe extensa bibliografia (a que podemos acrescentar dados oferecidos nos próprios livros de Fischer, ainda que nem sempre completos). Lembro ainda, com matérias em periódicos como o BsB Letras (que lhe dedicou integralmente a edição de 22 de dezembro de 1991), o Jornal do Brasil e o Linguagem Viva (editado em sua terra natal por Adriano Nogueira e Rosani Abou Adal), os nomes de Aglaia Souza, Branca Bakaj, Hilda Mendonça, J. M. Leitão, João Carlos Taveira, Julio Cezar, Marlene Andrade Martins e Patricia Bins; no Correio Braziliense, José Augusto Guerra (14.8.1970) e Luiz Beltrão (14.8 e 20.11.1970).

Um Romance Inédito

Caio Porfírio Carneiro, no artigo do Linguagem Viva, depois de se reportar elogiosamente ao romance O Rosto Perdido e à novela De Repente a Primavera, diz mais: “Deixou inédito um belíssimo romance, que tive o prazer de ler no original. Obra de conflito familiar e suas solidões, em andamento poético e um pouco doído.”
Esse romance é A Repressora, e está sendo editado pela ANE, nas oficinas da Kelps, de Goiânia, como uma das homenagens ao nosso grande escritor pelo seu centenário de nascimento, que ora comemoramos. Como o anterior, O Rosto Perdido, ambienta-se em Brasília, sendo pródigo nas referências a fatos vivenciados e protagonizados pelo autor. Vamos antecipar-lhe uma página que, se não exemplifica os seus méritos de ficcionista, demonstra bem a presença do homem de opinião, do lutador renitente, do crítico social. Relembra, nela, os saudosos encontros nacionais de escritores, lamentando os novos tempos em que a prestigiação da cultura entrava em decadência. É o começo do capítulo “O Encontro Invisível”:

O Encontro Nacional de Escritores, um dos mais importantes eventos culturais da Capital da República, promovido há cerca de vinte anos pela Fundação Cultural do Distrito Federal com o maior êxito, parece ter-se acabado no segundo ano da chamada Nova República. O do ano passado foi fraco, mas houve. Os anteriores contavam sempre com a presença, em Brasília, dos mais destacados escritores do País, vindos de quase todos os Estados, que participavam, com os aqui residentes, de seminários, ciclos de conferências e debates e de reuniões de caráter social, destinadas ao reencontro de colegas e amigos dispersos no imenso território nacional. O mundo intelectual de Brasília prestigiava as realizações com sua presença interessada, os estudantes universitários inscreviam-se para participar de debates e séries de conferências, e a sociedade brasiliense abria suas portas para a confraternização dos escritores.
Entre os vinte a trinta escritores de fora, que participavam dos encontros, contavam-se os nomes mais consagrados da literatura brasileira e jovens valores emergentes, com obra ainda pequena. Durante alguns dias, Brasília se transformava na Capital da literatura do País.

Minha Visão do Contista

Tenho para mim que o conto é a linguagem natural de Almeida Fischer. Reconheço e proclamo os altos méritos do romancista, do novelista e do crítico (devendo agora acrescentar que, no fim da vida, ele se dedicou também à poesia), mas, como disse ao comentar seu Memorial de Inverno, o conto está nas origens do escritor, e é o seu gênero maior. Escrevendo, de outra feita, sobre os 10 Contos Escolhidos, ressaltei, neles, a condensação e dramatização do cotidiano, o realismo às vezes extremo —se bem que, na visão de Heitor Martins, alternado ou combinado com o fantástico—, e ainda a arte do detalhe estratégico, da ordem escolhida para a exposição, da montagem, enfim; e, de outro ponto de vista, a exibição do contraste entre o ostensivo esbanjamento de uns e a miséria de outros. Contraponteava, também, com esse realismo o clima poético haurido em passagens como esta, de “O Rosto”, uma de suas mais impressivas histórias curtas (que em geral o são os seus contos):

Joceli tinha uns olhos superlativamente verdes como uma esperança, os seios duros e empinados, de um moreno claro, os longos braços nus sempre prontos a abrigar-lhe o corpo, os cabelos molhados de mar, escorridos sobre os ombros. E havia barcos de pesca sobre o mar tranqüilo, movediços pontos brancos que se apagavam na distância, que se afastavam para além do horizonte.

De sublinhar, ainda, na obra contística, a simplicidade da narrativa, sem excessos nem truques, lenta e regular, tom geral de tristeza e solidão, amargo até, mesmo nas discretas manifestações de humor, tendentes ao negro. E, como pano de fundo, a presença clara ou velada de Brasília, na observação de Heitor Martins, que o afirma o “mais apto cantor” da cidade.
Dizem que repetir a si mesmo não é plágio. Permitam que me repita um pouco, pois o que disse há tantos anos sobre o nosso contista é o que gostaria de lhes dizer agora. Fischer tem o sentido do conto, e o sentido do dramático. Não estaciona jamais no patamar do anedótico, de que faz emergir —e tanto melhor se nem sempre ostensiva— uma verdade geral, ou uma verdade íntima. E, mercê de uma técnica de captação da realidade temperada por uma ótica intencionalmente deformadora, corretiva, parece, não raramente, que o contista brinca com essa realidade, ou dela se vinga. Quase como se se divertisse antepondo aos seus rostos (palavra de notória incidência em sua ficção), ou aos seus personagens, uma série de espelhos deformadores.
A seguir, mais um fragmento ilustrativo, extraído de "O Mastro", que reputo um dos mais bem realizados contos de Almeida Fischer:
Com pouco mais de doze anos e sem nenhuma preparação para a vida, Joaquim saiu em busca de emprego, o jornal debaixo do braço e um grande temor pesando-lhe na alma. Não conhecia nenhuma espécie de trabalho e nem sabia a que emprego aspirar. A muito custo, depois de percorrer numerosos andares de diversos edifícios, de escritório em escritório, de loja em loja, conseguiu um lugar em uma equipe de propagandistas de rua, como distribuidor de impressos de casas comerciais anunciadas, através de imenso alto-falante, por um homem que se equilibrava sobre longuíssimas pernas de pau. ....
Joaquim cresceu e ficou homem sempre andando sobre longas pernas de pau, o rosto borrado de vermelho e branco, olhando do alto as pessoas e as coisas, a jovem cabeça envolvida pelo ar puro das alturas, o olhar abrangendo a agitada multidão das ruas centrais, acima das pequenas tragédias do asfalto, das lamúrias dos mendigos e da impertinência dos camelôs.
Aos poucos, um estranho desejo de crescer mais se foi apoderando de Joaquim. E o comprimento das pernas de pau foi sendo gradativamente aumentado, a ponto de ele ser obrigado a se curvar para não bater com a cabeça nos fios elétricos. Cada vez mais distante das criaturas e coisas de dimensões normais, Joaquim começou paulatinamente a sentir um certo desprezo pelas multidões que lhe roçavam as pernas ....

O Crítico Literário

Quem faz literatura acaba escrevendo sobre literatura. É quase um corolário. Disso não destoou Almeida Fischer. Em 1970 reuniu em livro, pela primeira vez, escritos sobre livros, lançando a primeira série de O Áspero Ofício (Comissão Estadual de Cultura de São Paulo; Prêmio Assis Chateaubriand da Academia Brasileira de Letras). A segunda sairia em 1972, pela Ebrasa. A terceira e a quarta, no Rio, pela Cátedra/INL, em 1977 e 1980. A quinta em 1983, novamente pela Cátedra/INL. Finalmente a sexta, pela Horizonte/INL, em Brasília, 1985. De 1983 é o opúsculo A Literatura de Brasília, editado em Lisboa (incluído na quinta série).
O reconhecimento dessa faceta do escritor é proclamado enfaticamente por Nataniel Dantas nas dobras de O Áspero Ofício, 2.ª série: “antes do contista e do romancista, urdidos de fábula, Almeida Fischer — pastor de rebanhos literários e de tudo o que diz respeito à comunidade das letras — é um espírito crítico de grande penetração e notável sensibilidade, servido por um indispensável conhecimento humanístico”.
O sentido da crítica fischeriana é dado por Fischer mesmo, na abertura da série inicial. Embora reconhecendo que “um livro publicado, desde o momento de seu lançamento, se desliga de seu autor, ganhando autonomia, sobrevivendo apenas em função de suas qualidades intrínsecas”, e que “a dissecação de obras literárias, levada à radicalização, segundo as teorias mais recentes, constitui bom exercício escolar, destinado a aferir a agudeza de observação e de investigação, bem como o aparelhamento metodológico dos que se iniciam na análise da criação literária”, conclui que “a crítica, em literatura, não é apenas isso, não obstante também o seja: é, igualmente, exercício de cultura humanística, de bom senso e de sensibilidade”. Na 3.ª série, explicitaria ainda mais a sua posição, que implica (e com isso concordamos) "uma visão crítica não desinformada sobre métodos e processos de análise e julgamento da obra literária experimentados a partir das teorizações e especulações de correntes lingüísticas já um tanto antigas —ainda consideradas de vanguarda em nosso País—, mas sem qualquer passionalismo ou condicionamento em relação a essas experimentações". Na 5.ª série, páginas 125/6, ao falar sobre livros de Danilo Gomes e Edla van Steen, confessará ver-se de novo “diante da velha controvérsia suscitada, a partir de 1914/15, pelos formalistas russos e trazida até nossos dias pelos teóricos do ‘new criticism’ e do estruturalismo: a não valia (ou a valia?) do biografismo — e também do sociologismo — para os estudos do fenômeno literário”. Sua tendência será sempre, sem afastar de todo esses teóricos, evitar os excessos dos que chegam “ao extremo de defender a eliminação, da capa dos livros, do nome de seu autor, bem como de qualquer outra referência que lhe diga respeito”... E explicita, afinal:

A crítica mais bem orientada de nossos dias aproveitou as lições válidas das correntes formalistas, suprimindo-lhes os excessos passionais, e já não despreza como inúteis todas as informações marginais à obra mas capazes de fazer luz sobre o texto em exame.

Almeida Fischer exerceu a crítica literária num período em que os rodapés praticamente desertavam dos grandes jornais. E o fez com dignidade, constância e valor.

O Homem

Tanto eu quanto Fischer chegamos a Brasília em 1960; eu em 12 de julho, ele em fins do ano. Já não sei em que circunstâncias nos conhecemos. Os primeiros contactos de que me lembro foram na Livraria Dom Bosco, situada na 108 Sul, na ponta oposta à da igrejinha de Nossa Senhora de Fátima. Sei que —perdoem se novamente me repito— nos ligamos definitivamente pelos laços de uma afinidade intelectual (em verdade, transintelectual, pois me parece certo que a inteligência, não afetivamente considerada, aproxima as mentes mas não tem o condão de fazer amigos).
Empreendedor e agregador, marcou sua semeadura cultural nesta cidade com a fundação, em sessão realizada nessa casa de livros, já em 21 de abril de 1963, de sua primeira entidade literária, a Associação Nacional de Escritores. Em torno de sua atuação congregante, fosse na ANE, fosse nas Academias Brasiliense e do Brasil, fosse nos suplementos que fundou e dirigiu, em suas atividades editoriais como nos cargos que exerceu, gravitou a nata da produção cultural brasiliense por extenso período.
Acabado exemplar de bicho-das-letras, tinha por devoção a literatura: ler, escrever, estimular, divulgar, criticar — nada lhe era estranho ou de menor interesse. Fora do âmbito familiar, não gostava que o chamassem pelo primeiro nome. Era como se dissesse: “Vivo pela literatura, e literariamente meu nome é Almeida Fischer. Mas podem me chamar de Fischer...”
Homem de fala escandida e tranqüila, era de trato agradável, amigo leal e dedicado. Não obstante essas amenidades, era capaz de polemizar. Nem escondia sua má-vontade para com plumitivos menos aquinhoados de talento, porém superdotados de oportunismo.
Gregário por natureza, como já disse, preferia as reuniões informais às solenes, embora reconhecesse a estas o seu importante lugar. E nada para reunir pessoas como cadeiras em redor de uma mesa sobre a qual paire a sedução de uma loura bem gelada... Assim, quando a ANE pôde contar com uma sede, instrumentou-a com mesas, cadeiras e uma geladeira, que ninguém é de ferro... Mas é claro que havia, na sala, um miniauditório, em que a literatura era cultuada, como de rigor. Cabe dizer que a ANE continua essa tradição: nas Quintas Literárias como em outros eventos, após o culto vem o congraçamento.
Em 1976 o coração pregou-lhe uma peça, ameaçando levá-lo precocemente para a outra margem. Teve de ir para a mesa de operações, em São Paulo. Deu tudo certo. Gosto de rememorar uma atitude sua, característica do seu modo de ser. Nem bem saíra da cirurgia, convenceu o médico a permitir-lhe uma comemorativa dosezinha de uísque. Visualizo a cena, também com uma boa dose — só que de imaginação: Fischer sentado na cama, em pleno pós-operatório, a saborear com um sorriso quase infantil o seu cardiotônico uisquinho...
Já que lembrei o episódio, por que não lembrar também o sonetilho que lhe dediquei, quando de sua volta? Ei-lo:

CARDIOGRAMA PARA ALMEIDA FISCHER

                             Passado em 6 de outubro de 1976


Tem razões o coração
que nem sempre a razão sabe.
Muitas vezes, de emoção,
ele em si mesmo não cabe.

E mais ditado nenhum
diga eu hoje, que receio
de tanto lugar-comum
o coração fique cheio.

Só mais uma coisa (por
não pôr-lhe a paciência à prova):
É bom, em pleno vigor,

novamente ao nosso lado
vê-lo — de alma sempre nova,
num coração renovado.

Se disso não morreu —continuo na trilha do que escrevi no décimo aniversário de seu passamento—, foi-se-lhe, porém, combalindo o corpo às agressões do fumo, que não largou, e da bebida, que pelo menos reduziu.
Quinze anos depois, em setembro de 1991, voltando para casa de uma das reuniões sociais da ANE, que então se faziam no extinto Macambira da 406 Sul (as vacas tinham emagrecido, não mais podia a Associação pagar o aluguel de uma sala), caiu e quebrou o fêmur. Cirurgia com implante de platina. Infecção hospitalar. Com a resistência minada, não resistiu.
Almeida Fischer faleceu em 17 de setembro de 1991. Não sei como terminar esta oração, com que lhe saúdo (saudamos) o centenário de nascimento, senão reproduzindo palavras que pronunciei no momento de seu embarque na caravela definitiva, dirigindo-me diretamente ao amigo:

Você foi, sem dúvida, um grande escritor, pelas realizações na novela e no romance, nem todas publicadas; pelo meritório esforço das seis séries editadas de O Áspero Ofício, em que você supriu quase sozinho a imensa lacuna que se formou em nosso país no campo da crítica literária; mas, sobretudo, a meu ver, no terreno do conto, limítrofe do poético — território este que você começou também a trilhar, no fim da vida, com o talento que punha em tudo a que se dedicava.
Mas, além do profícuo trabalho de escritor, você nos deu ainda uma intensa e variada atividade de agente, catalisador, incentivador literário, desde o tempo de secretário do Letras e Artes, no Rio de Janeiro. Jornalista, professor, criador de entidades voltadas para as letras, promotor de eventos literários, você foi também um pescador de talentos, aos quais deu sempre, infatigavelmente, lição e apoio.
Para mim, porém, para nós que aqui nos reunimos nesta hora definitiva, você foi muito mais do que isso: você foi um dos construtores e mantenedores de um dos fundamentos espirituais desta cidade-limiar, que você, como nós, amava, e em que você, como nós, acreditava. E, acima de tudo, você foi o amigo; o homem às vezes áspero, o líder brigão, em certos aspectos quase intratável, mas sempre, no fundo, o lutador invariavelmente orientado para o bom combate, o homem bom, o amigo certo.

Almeida Fischer foi casado com Irany Corazza, com quem teve três filhas: Valnira, Valnete e Valnides.

Uniu-se em segundas núpcias com Milena Rivas Fischer, amiga nossa, amiga desta casa. São três os filhos do casal: Denise, Márcio e Fábio. À estimada família, os nossos cumprimentos e o nosso abraço.

texto publicado no Jornal da Associação Nacional de Escritores 

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