CASSIANO NUNES:
VIDA E POESIA EM SIMBIOSE
CASSIANO NUNES:
VIDA E POESIA EM SIMBIOSE,
Página 109 do livro Proclamações
de Anderson Braga Horta - bragahorta@superig.com.br
Falar sobre a
poética de Cassiano Nunes pode, por um lado, parecer pretensioso; de outro,
pode parecer fácil, por mais de uma razão: o poeta deixou, no gênero, obra
pouco volumosa; e não é chegado a requintes, rebuscamentos ou pesquisas formais.
Isso não quer dizer que fosse um versejador bisonho; ao contrário, sabia usar o
seu instrumento, e tinha o que dizer por seu intermédio. Foi poeta de valor –
tanto pela forma correta e elegante quanto (permitam-me recair na velha
dicotomia...) pelo conteúdo pensamental e humano. Foi um poeta pela sua
trajetória intelectual em verso e o foi pelos caminhos em que viajou sua vida.
E está dito o essencial.
Seja como for
―fácil ou árdua a empreitada―, não é minha intenção dar a esta fala dimensão
prevalentemente técnica; desejo, sim, aproveitar a ocasião para recordar a
estimável poesia dessa amável figura que foi o nosso Cassiano, entremeando o
discurso com poemas e fragmentos que decerto o valorizarão.
Tampouco é meu
propósito entrar em minudências biográficas; mas alguns elementos da biografia
são importantes para entendermos o homem-poeta (se bem que, para a fruição de
sua poesia, baste o contacto com ela, que nos envolve de imediato e dispensa
qualquer veleidade de explicação). Comecemos com esses dados.
Cassiano nasceu
em Santos, em 27 de abril de 1921. Filho de pais portugueses, de condição
modesta, passou a infância numa rua proletária de Vila Matias. Formou-se
contador; sua vocação, porém, era a literatura. O lado prático da vida o fez datilógrafo, por três anos, do Instituto de
Aposentadoria e Pensões da Estiva; mais consentâneo a suas inclinações foi o
trabalho no Office of Inter-American Affairs, que chegou a chefiar; mas o
cabedal que levou da cidade natal tem raízes sobretudo no jornalismo e na crítica
literária que praticou em A Tribuna,
além da participação no movimento literário denominado pesquisista, ao lado de Miroel Silveira e outros. Teve, ainda,
posição de liderança no Centro de Estudos Fernando Pessoa, juntamente com
Patrícia Galvão e Geraldo Ferraz.
Cassiano Nunes - foto de cláudia brino |
Antes que o
jovem Cassiano saia de Santos, o que se dará em 1947, voltemos àquele
famigerado “lado prático”, a que o
jungia momentaneamente a necessidade, e que repugnava aos seus pendores
artístico-intelectuais. Estes iam gradativa mas firmemente ganhando terreno, e
foi essa resistência obstinada um dos fundamentos de severo conflito com o pai,
conflito que lhe minou a infância, marcou a adolescência e fez para sempre
vincada a face do homem e do poeta. O registro desse doloroso embate é impactante
numa de suas mais conhecidas e populares composições, provavelmente o seu carro-chefe, o seu grande sucesso de público, o seu hit, que ele gostava de declamar e era
invariavelmente aplaudido com entusiasmo:
BICICLETA
Se eu tivesse bicicleta,
muito bicicletaria!
Iria à ilha de Creta
e às matas da cafraria.
Antes da idade provecta
muitas terras correria.
Minha ambição predileta
é ser vento e geografia!
Mas não terei bicicleta...
Como no tempo em menino.
A mágoa ficou secreta,
calar foi sinal de tino.
Manter posição discreta!
Meu pai legou-me este ensino...
Se eu tivesse bicicleta
como tem qualquer menino,
ele acharia um desatino...
Uma observação
curiosa sobre esse poema, que, não sendo, literariamente, um de seus melhores,
era com certeza o mais lembrado e solicitado pelo cortejo de fãs do poeta: sua fatura é excepcional
no contexto da obra, porquanto inteiramente metrificado, vazado que foi na
fôrma da redondilha maior. (Mesmo o
último verso pode ser lido canonicamente nessa
medida; mas ele não o fazia: preferia declamá-lo naturalmente como um octossílabo. Assim o fiz, acompanhando a
lição. Com isso, a coda soa como uma
dissonância que acentua o conflito.)
Em duas outras
ocasiões nosso poeta se refere diretamente ao pai. Uma delas em “Ao Espelho”,
um dos quatro integrantes do opúsculo Poemas
de um Velho, posterior à última reunião de seus versos, nos volumes Poesia – I e Poesia – II, de 1997 e 1998 (“Vou olhar-me ao espelho: / deparo com
meu pai”). A outra em “Os Bombons da Leonesa”, peça mais longa que o habitual
em sua poesia, e que desejo rever já pelo valor biográfico, sentimental,
confessional, já pela iluminação do terceto que a encerra espraiando-se como
uma bênção. Não o posso ler sem que me não comova o que há nele de redenção e
de genuinamente belo.
Emprego a
apossínclise, aqui, de caso pensado, para trazer à baila a única passagem, se me
não trai a memória, em que o poeta abriga uma sintaxe que se possa dizer
arcaica. É no “Tema de Drummond”, na passagem do meio para o fim: “A Poesia é
susceptível demais. / Afeta-a, como inconveniência, / qualquer interesse / que
lhe não seja próprio. / A Poesia retrai-se / à nossa intimidade carnal. / Ela
apenas, com olhos cegos, mas imortais, / nos aponta / a Beleza serena e
imperecível / que, em seu universo-diamante, / deve, para nós, / simplesmente
significar / nostalgia e rigor.” Diga-se que, à semelhança de Drummond, também
ele não seguiu o próprio preceito poético...
Noutra
oportunidade, entretanto, refletindo sobre o assunto, já então em prosa, no
ensaio “Poesia e Antipoesia”, inserido em A
Felicidade pela Literatura, assim se manifesta:
A Poesia ― refiro-me àquela restrita que
é representada pelo objeto-poema e não a vasta, a geral, que se estende pelo
Universo ― concretiza por meio do verbo a emoção inefável que o Homem sente em
certos momentos extraordinários de sua existência, permitindo assim que as outras
pessoas ― ouvintes, ou leitores ― possam partilhar dessa mesma emoção (ou
aproximar-se dela). Essa emoção complexa está inextricavelmente ligada à
Beleza.
Mas voltemos ao
poema da Leonesa:
OS BOMBONS DA LEONESA
Após o duro dia de trabalho
na oficina mecânica,
lavado e depois da janta,
meu pai saía à noite.
Ia conversar
com os sócios, colegas e
fregueses,
no café A Leonesa
do largo do Rosário,
onde toda a gente se encontrava em
Santos.
A vida era mais social e humana
naquele tempo.
E da Leonesa, que era também confeitaria,
Papai me trazia bombons de
chocolate
com licor,
deliciosos.
Mas o que mais me seduzia nos
bombons
era o seu invólucro
de papel prateado.
De diversas cores,
sempre rebrilhantes,
eles me deslumbravam.
Provocavam a minha fantasia,
a vocação para a Arte,
que porventura
havia em mim, em germe.
De manhã, ao deparar com o
presente imprevisto,
sobre a cama,
ficava cheio de contentamento.
Hoje, velho, penso ainda na Leonesa e seus bombons.
Guardo mágoas de meu pai, difíceis
de apagar.
O raciocínio e a generosidade
insistem pelo perdão,
de que me defendo,
com a força de um instinto.
Mas penso nele com ternura,
ao evocar os bombons da Leonesa.
Não pelo chocolate saboroso,
nem pelo papel brilhante e
colorido.
Mas porque o costumeiro presente
parecia revelar um pensamento
amável,
a terna lembrança de meu pai por
mim,
ser insignificante,
no meio das distrações numerosas
da cidade.
Então, num túnel escuro,
uma luz alvíssima cai sobre mim
e me transfigura e redime.
Durante sua
primeira (e breve) estada na capital paulista, Cassiano Nunes trabalha como
secretário-executivo da Câmara Brasileira do Livro, por intercessão de Edgard
Cavalheiro, participa do Primeiro Congresso de Escritores do Estado, em
Limeira, e secretaria o Primeiro Congresso de Editores Livreiros do Brasil. Mas
nesse mesmo ano de 1947 vai para os Estados Unidos, mercê de bolsa de estudo
com duração de um ano. Retornando ao Brasil, torna-se orientador literário da
editora Saraiva. Fez época e prestou grandes benefícios à juventude ledora de
então a Coleção Saraiva, em boa parte graças a ele e a Mário da Silva Brito. Eu
mesmo, adolescente e estudante do colegial, me vali de seus bons livros e de
seus bons preços. Incapaz de se acomodar, ele estuda latim, doutora-se em
Letras Anglo-Germânicas, conquista nova bolsa, dessa vez na Universidade de
Heidelberg, onde também leciona, ministrando um curso sobre nossa poesia
modernista, ajuda Antônio Soares Amora e outros mestres a fundar a Faculdade de
Letras de Assis, no Estado de São Paulo, torna-se visiting professor na New York University... Enfim, de volta
definitivamente ao Brasil, ouve o conselho de Drummond e vem dar com os
costados em Brasília, lecionando na UnB até a aposentadoria, aos 70 anos,
repetindo inabalavelmente sua profissão de fé poética e exercendo na cidade,
até o fim da vida, um magistério de simpatia, compreensão e tolerância,
virtudes sem as quais a competência pode tornar-se estéril.
De seu agitado
périplo entre Santos e Brasília resume o essencial outro de seus marcantes
poemas:
SOU DE SANTOS
Depois de ler “Where a Poet’s From”,
de Archibald McLeish
Nasci perto do mar
como Ribeiro Couto.
Como ele, cantei
o cais de Paquetá,
cheio de marinheiros,
estrangeiros,
aventureiros.
Apitos roucos de navios
me atraíam para outras terras,
propostas sedutoras.
Corri mundo.
Vim parar no Planalto Central
onde, solitário, entre livros,
contemplo os últimos anos.
Às vezes, à noite,
me encaminho para o lado do Eixo
e me detenho ante os terrenos
baldios
(amplidão) da Asa Sul.
Ao longe,
os guindastes das construções
sugerem um cenário de cais...
E o vento me traz com o cheiro de
sal
o inútil apelo do mar.
Cassiano era
homem sociável. Mais do que isso, amorável. Mas de solidão interna. Solidão
essencial. Solidão que se reflete até mesmo no fato de povoar sua casa de
livros: na sala, nos corredores, nos quartos, no banheiro, na cozinha...
Solidão que se embebe em sua vida, solidão que permeia sua poesia. Solidão que risca o “Poema do Aeroporto”, o “Blue n.º 2”, “A Busca”, “O Retardatário”, a “Canção do Amor Tranqüilo”, “A Hora Selvagem”, “Alta Noite”, “Improviso”, “Breve Serenata”, “Le Dîner sur l’Herbe”, “Sobrevivente”, “Hotel Mathias: Uma Estrela”, “No Quarto de Fernando Pessoa”...
Solidão que se embebe em sua vida, solidão que permeia sua poesia. Solidão que risca o “Poema do Aeroporto”, o “Blue n.º 2”, “A Busca”, “O Retardatário”, a “Canção do Amor Tranqüilo”, “A Hora Selvagem”, “Alta Noite”, “Improviso”, “Breve Serenata”, “Le Dîner sur l’Herbe”, “Sobrevivente”, “Hotel Mathias: Uma Estrela”, “No Quarto de Fernando Pessoa”...
Quase corolário
da solidão, outro tópos da poesia
cassiânica é a autoperquirição, presente em composições como “Espera um Pouco”,
“Assassinato do Menino”, “Canto do Prisioneiro”, “Mistério da Noite”, “Harlem
Blues”, “Irreconhecível”, “O Fantasma”, “Aniversário”, “À Guisa de Adeus”,
“Outro Aniversário”, “Brincar com o
Delfim”, e, obliquamente, em “Este Velho Cão” ― que leio:
ESTE VELHO CÃO
Este velho cão
que me acompanha sempre,
contra a minha resistência.
Este velho cão
que se esconde
debaixo da minha pele.
Ele uiva até nas noites
estreladas.
O luar o alucina.
Pergunto-me tantas vezes:
“Por que o suporto?”
E me respondo:
“É porque ele é o meu inimigo
mas é eu próprio.”
Devo suportar
a dolorosa rotina
com este velho cão.
Até que um dia
os meus olhos se fechem,
depois de oscilarem
entre a morte e o sonho.
Esse tópos, assim como os anteriores, em
rigor assim como todos os que faz desfilar em sua trajetória, imbricam
naturalmente na condição humana, que é, todavia, mais especificamente
tematizada em “Lutadores”, “Blue”, “Ensinando um Pássaro a Cantar”, “Blue n.º
2”, “Cais do Paquetá” (“pode a vida estar errada / que o coração está certo”),
“Fim de Ano” (“aceito, agradecido, / a solidão / como apoteose”). Simples, pois
―e ao mesmo tempo complexa―, é a sua temática, tal qual a humanidade a que se
vincula, e nessa imbricação convivem o menino morto mas teimosamente
ressuscitante no adulto, o anátema, a solidão. Vejamos um deles:
ENSINANDO UM PÁSSARO A CANTAR
O que tu cantas, pássaro,
é prata e cristal.
Sonora matemática
retinindo em metal.
Rumorejo de arroio
em demanda de tom.
Desprovidos de senso
os arabescos de som...
Capricho bachiano
em pequeno instrumento
de penas e de nácar,
a responder ao vento...
Mas embora aprecie
essa música fria,
acho que o canto humano
possui maior valia.
Os êxtases gratuitos
num vórtice se somem...
Só é nobre o papel
alvo que se sujou
com as digitais do Homem.
.
Seu curso entre os pólos de um planeta
aparentemente restrito, mas fabulosamente ilimitado, é uma oscilação entre duas
cadeias, as do mundo cá fora ("prisioneiro do incolor" ―
"Ciganos") e as de um universo interior ("prisioneiro do
arco-íris" ― "Canto do Prisioneiro"), se não me excedo na
interpretação dessas metáforas antitéticas. Antítese que se resolve, talvez, na
síntese do "Poema de Aniversário":
o Poeta mora "numa canção / ― área que se situa / entre o Sonho e a
Solidão".
E o amor? e o
desamor? Não serão de primeira importância para esse homem que há pouco chamei
de amorável? Claro, também do amor devemos dizer que dá seiva a sua poesia,
circula por ela, destacado ou de mistura com outros temas, atormentado amor de
que nos dá o tom este curto poema:
EPISÓDIO
Fácil,
o Amor me ofereceu
a sua corola rubra,
mercenária.
E eu me retraí,
ferido como a sensitiva,
que, após o toque humano,
sofre ainda mais
a solidão
entre pedras.
Cito alguns
outros: “Poema de Exceção”, “Versos para Certo Hotel”, “Metamorfose”, “Canção
do Amor Tranqüilo”, “Estrangeiros”, “Noturno”, “Aspiração”, “Atração”,
“Improviso”, “Dois Corpos e Uma Flor”, “Amor e Morte”, “A Campainha”; e, para
fechar este capítulo, “A Serenidade do Fim”, que assinala a libertação dos
tormentos pela pacificação do sexo.
É possível que
tenhamos ouvido alguma vez a acusação de absentismo ou alienação ao nosso
homenageado. Como que se defendendo ―o que nem seria necessário, tratando-se de
poeta em que, já o vimos, a preocupação com a condição humana é quase
onipresente―, publicou os opúsculos Três
Poemas do Povo Brasileiro e Versos
Íntimos e Poesia Social, em que o poeta-cidadão se apresenta por intermédio
dos versos de “Invasões”, dedicados a Darcy Ribeiro, e “Provação dos
Paus-de-Arara”. Maria de Jesus Evangelista, em Cassiano Nunes: Poesia e Arte, por sua vez, desmente a imputação
com a análise da “Ode a Oscar Niemeyer”, afirmando que “nenhum projeto de
política social e reforma agrária seria tão definitivo como expresso está nos
versos cassianianos” e acrescentando:
“Ode a Oscar Niemeyer” é o libelo contra
toda exploração do homem pelo homem e a negação absoluta do absenteísmo e
omissão do poeta Cassiano Nunes. A “Ode” de Cassiano fez-se arte sem falso
engajamento e sem perda de suas excelências poéticas. É a negação de qualquer
panfletismo populista.
Melhor,
entretanto, que nossas aproximações ―digamos― temáticas seria a entrega pura e
simples às águas fluentes de sua poesia, ao puro lirismo, por exemplo, de “O
Mergulhador”, “Washington Square”, “Noturno n.º 1”, “Avelós”, “Ciganos”,
“Instante”. Leio o segundo:
WASHINGTON SQUARE
De madrugada,
atravesso o parque
deserto.
Ficou
de minha propriedade
particular.
Até a névoa
me pertence.
A estrela
fui eu que inventei.
A poesia de
Cassiano Nunes é despojada: linguagem bem cuidada, mas nada de excessos de
palavras, de preciosismos lingüísticos, de complicações formais, enfim. O verso
é livre, mas freqüente o emprego da rima. Não metrificada, mas musical, com
apurado senso de ritmo. Quando opta por metrificar, às vezes o faz um tanto à
João Cabral, um tanto a certa maneira arcaica, elegendo um padrão silábico em
torno do qual se permite ligeiras variações para mais ou para menos.
O poeta é
moderno, claro e sensível, dono de "um terno e dolorido lirismo",
disse, na introdução a Jornada Lírica,
o saudoso Antônio Roberval Miketen. Quem pôde escrever um poema doloroso como
"Bicicleta", poemas impressivos como "O Retardatário",
"Canção do Amor Tranqüilo", "Bonnard", "O
Fantasma", "À Guisa de Adeus", "Sou de Santos", poemas
perfeitos como "Blue n.º 2", "Washington Square", tem de
ser, sim, conforme conclui o seu excelente estudo introdutório, "um grande
lírico dentro da poesia brasileira".
Sobre ele
escreveram, ainda, figuras de peso como Álvaro Lins, Antônio Houaiss, Brito
Broca, Hermann José Reipert, Wilson Martins, Oscar Mendes, Mário de Andrade
(“Cassiano Nunes é uma promessa de grande crítico de poesia, o que sempre
faltou no Brasil”) ou como Herculano Pires, Geraldo Ferraz, Helena Silveira,
Moisés Gicovate, Samuel Putnam, Oscar Fernandez, Antônio Carlos Vilaça, Sérgio
Milliet, Roldão Mendes Rosa, Veríssimo de Melo, Henrique Novak, Taibo
Cadórniga, Gilberto F. Vasconcellos, Narciso de Andrade Neto, mais os
brasilienses Danilo Gomes, Francisco Alberto Sales, J. Guilherme de Aragão,
José Augusto Guerra. Alan Viggiano e Fontes de Alencar o homenageiam,
celebrando os 90 anos de seu nascimento, no Jornal
da ANE n.º 41, de agosto-setembro de 2011.
Destaco os
comentaristas de sua obra poética, a começar de Edson Nery da Fonseca, segundo
o qual escreveu ele “alguns dos mais belos poemas eróticos da língua
portuguesa”.
Domingos
Carvalho da Silva deste modo discorre sobre Jornada,
na primeira orelha do livro:
Revela a poesia de Cassiano Nunes um caso
em que a experiência intelectual foi posta a serviço da experiência humana. Com
isto se acomoda o fato de o autor de Jornada,
contrariando a regra habitual, ter surgido nas letras como jornalista, crítico
literário e ensaísta: somente vinte e cinco anos depois de começar a assinar em
A Tribuna de Santos, sua cidade
natal, artigos sobre literatura é que mostrou a face do poeta de Prisioneiro do Arco-Íris.
Carece por isso a poesia de Cassiano
Nunes do capítulo em que, habitualmente, se condensa o lirismo juvenil de quase
todos os poetas brasileiros. Em compensação, ou porque represente uma visão da
existência e do mundo apreendida já depois do trânsito da juventude, oferecem
os poemas reunidos neste volume o traslado de momentos de refletida sensibilidade,
de filtrada análise vivencial decorrente tanto do autoconhecimento como da
objetiva contemplação do mundo.
Jornada é, no sentido mais preciso, o
trabalho ou a viagem de um dia. Na capa de um livro é um título não apenas
metafórico ― o que seria pobre demais ― mas simbólico. Um livro de poemas pode
ser o símbolo e a síntese da missão humana no mundo.
Para Marcílio
Farias, era “um dos maiores poetas brasileiros vivos .... dono de uma poética
ímpar na história de nossa poesia: a poética orgânica, do toque e do encontro
com a existência. Poesia fato, resistência, fortaleza”.
Danilo Lobo
assim o analisa:
Herdeiro do modernismo em Madrugada, Cassiano Nunes parece, à
primeira vista, despreocupado com qualquer problema formal. Esta impressão
resulta da extrema naturalidade com que parecem se estruturar os poemas. Os
versos são livres, o ritmo espontâneo e a rima, quando necessária, aparente no
final do verso. Mas o leitor não se deve deixar enganar: Madrugada representa, muito pelo contrário, um esforço consciente
para captar o poético em composições curtas, de forma altamente concentrada,
medida e pesada.
M. Paulo Nunes,
afirmando “ser o teatro, segundo a melhor tradição clássica, inseparável da
poesia”, opina ser essa “talvez a razão secreta de estarem as duas
manifestações artísticas presentes em Cassiano Nunes”.
Jorge Medauar,
em poema que lhe dedica, não regateia:
Ensaios, artigos, cartas
― tudo seu é poesia.
Geraldo Ferraz,
a propósito de dois poemas de Jornada,
“o do aniversário e o dos quarenta anos”, diz que “sem querer é Borges que nos
vem com seu espelho de enigmas”.
Para
Joaquim-Francisco Coelho, em acróstico a ele dedicado, sua “puríssima Poesia” é
“intensa em raciocínio e fantasia”.
Seu amigo
Raymond Sayers, notável brazilianist norte-americano,
acha Versos Íntimos “uma coleção que
surpreende pela sua insólita beleza”; quanto aos poemas líricos anteriores,
declara-os inigualáveis em sua musicalidade, de um simbolismo peculiar, fortes,
diretos e cheios de “compassion” pelo belo país natal do poeta e seus
“suffering inhabitants”, além de francos e honestos na expressão do erotismo.
Caio Porfírio
Carneiro acha o poema “Envelhecer” “uma das coisas mais lindas da nossa
poesia”.
O editor Waldir
Ribeiro do Val, igualmente ensaísta e poeta, destaca-lhe a sensibilidade, a
técnica apurada, “as imagens tantas vezes belíssimas, os temas nunca
ultrapassados”.
Claro que não
me proponho a tarefa impossível de esgotar o repertório crítico sobre a poética
de Cassiano Nunes, mas não deixarei de citar a Professora Maria de Jesus
Evangelista, nossa amiga Maju, sua admiradora, protetora e, após a sua morte,
curadora de seu legado cultural, cujo ensaio “Viagem em Temas e Verso de
Cassiano Nunes” completa esse rico elenco de observações acerca do poeta ao lhe
salientar a “extrema sinceridade sobre a miséria humana de ‘santo e pecador’,
numa mística da culpa e redenção”.
Dito isso,
apenas uma palavrinha sobre sua prosa, para lembrar que mestre Cassiano foi
escritor prolífico, autor de notável e numerosa obra ensaística, em que chamam
a atenção os muitos títulos dedicados a Monteiro Lobato. Diversos dos ensaios
que assina foram originalmente pronunciados como discursos ― e Cassiano orador
é um grande e cativante causeur,
passando, sempre, soberanamente ileso pelas armadilhas do gênero. Como
conferencista e ensaísta, tem o Professor Cassiano uma qualidade fundamental: é
sério sem ser cansativo. Seus estudos têm valor, têm peso, bem no-lo atesta a
crítica responsável; a par disso, logra conduzi-los com técnica de ficcionista
e jeito de bom conversador, que é (e dramaturgo, não se esqueça).
Para concluir:
Cassiano, homem de cultura que transformou sua casa num viveiro de livros, era
contudo pessoa simples. Freqüentador do Beirute, era popular, querido de todos.
Poeta e professor, dentro ou fora de classe, nos livros ou fora deles, exerceu
entre nós ―agrada-me repeti-lo― um magistério de simpatia, compreensão e
tolerância.
Arremato a homenagem com a leitura de um dos seus mais belos poemas:
BLUE
Versos, como os
que escrevi,
outros
escreverão.
Canções, como as
que cantei,
outros cantarão.
Já me substituiu
artesão mais
hábil
na oficina.
Outras bocas te
revelarão
volúpia mais
fina.
Tudo o que
morrer comigo
em mais bela
forma
o mundo verá.
Perdoem-me
pela parcela
mínima
― porém única! ―
que não se
repetirá.
Brasília, setembro de 2011.
BIBLIOGRAFIA
NUNES, Cassiano. Jornada.
Clube de Poesia, São Paulo, 1972.
― A Felicidade
pela Literatura. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1983
― Três Poemas do
Povo Brasileiro. Thesaurus, Brasília, opúsculo s/d [1991].
― Jornada Lírica.
Thesaurus, Brasília, 1983 e 1992.
― Contato Humano.
Roberval Editora, opúsculo s/d [Brasília, 1994].
― Versos Íntimos
e Poesia Social. Roberval Editora, opúsculo, Brasília, 1995.
― Poesia – I. Edições
Galo Branco, Rio de Janeiro, 1997.
― Poesia – II.
Edições Galo Branco, Rio de Janeiro, 1998.
― Poemas de um
Velho. Roberval Editora, opúsculo s/d [Brasília, 2000].
EVANGELISTA, Maria de Jesus. Cassiano Nunes: Poesia e Arte. Editora Universidade de Brasília,
2006.
― “Viagem em Temas e Verso de Cassiano Nunes”, in Tributo ao Poeta, Biblioteca Nacional
de Brasília, 2008.
Comentários
adorei conhecer este poeta...
parabéns pelo artigo
joão paulo silva
Maria Sampaio
Gostei muito também desta postagem.
Jaci LUDGERO DE SOUZA