Hitchcock e Hoffmann:
As surpresas da vida ordinária
*Thiago Andrade Macedo
Dias atrás, concluí a leitura de A Mulher do Neves, instigante livro do
maiúsculo escritor gaúcho Nelson Hoffmann, que me fora apresentado por nosso ícone cultural Waldemar José Solha. A obra encerra a trilogia policial capitaneada pelo advogado, contador
e descobridor de mistérios João Roque Landblut, iniciada por O Homem e o Bar (livro estupendo), que
foi sucedido pelo intrigante Onde está
Maria?. Os enredos dos livros trazem estórias intrincadas que se desenrolam
em pequenas cidades gaúchas, como a bela, pequena e estranha Três Mártires.
A memória é fogo! Eis que me vi, ao ler os baita
livros de Hoffmann, de volta ao Oeste Catarinense. Vivi naquela região por
quase dois anos de minha vida, e todo o sotaque e a cultura daquela gente eu
encontrei nos livros do escritor gaúcho de Roque Gonzales, a pequenina e
aguerrida cidade da região missioneira do Rio Grande do Sul.
Indo mais adiante e devassando outras memórias,
culturais e afetivas, ponho-me a recordar um filme muito particular de Alfred
Hitchcock, o seu O Terceiro Tiro (em
inglês “The Trouble with Harry”, mais uma bola fora de nossos tradutores), obra
estupenda lançada em 1955, cheia de humor negro, que se passa em um pequeno
vilarejo localizado no pouco conhecido Estado norte-americano de Vermont. O
filme marca o início da parceria entre o mestre absoluto do suspense no cinema,
talvez o maior cineasta de todos os tempos, e o músico Bernard Herrmann, autor
de trilhas inesquecíveis para o diretor a partir de então (vide as de “Um corpo
que cai/Vertigo” e “Psicose/Psycho”).
Não sei por que, mas, ao relembrar O Terceiro Tiro, que também traz a
estreia da magnífica e adorável atriz Shirley MacLaine no cinema, reencontrei
toda a atmosfera presente nos livros de mistério e suspense de Hoffmann. Filme
bastante peculiar do diretor inglês (e um de seus preferidos ─ e meus também!),
a obra é um ponto fora da curva dos elementos presentes em outros filmes do
mestre: a tensão não se desenrola na calada da noite, mas sim à luz do dia.
Pois bem. Transcorrendo em um belo dia ensolarado de outono, a trama versa
sobre como os moradores de pequeno local reagem ao saberem que o cadáver de um
homem chamado Harry é encontrado na encosta de uma colina. A partir daí, todo o
humor negro do mestre do suspense entra em cena.
De modo semelhante, nas saborosas estórias do
mestre gaúcho Nelson Hoffmann, que, além de advogado e contador, também é
filósofo, a ação se constrói baseada em tramas que são postas para o leitor de
forma bem trivial. Sem fazer alarde, com uma linguagem simples, concisa e
cativante, com o acento particular da região, Hoffmann vai seduzindo o leitor,
utilizando-se das artimanhas de outros mestres como Arthur Conan Doyle e Georges
Simenon. Quando seu herói intelectual João Roque Landblut surge ─ com seu jeito meio estranho, caladão, de
brasa do cigarro entre os olhos, os olhos perdidos no infinito, questionando a
eternidade ─ o leitor sabe que deve se agarrar a todos os detalhes, pois o
atento Landblut nada deixa escapar.
Em meio a divagações filosóficas e sem deixar de
lado também o indefectível chimarrão, tomando aqui e acolá, por vezes, umas
doses de uísque ou uns copos de cerveja, Landblut segue, ao longo das tramas,
em uma busca quase que obsessiva pela resolução de seus mistérios. A
genialidade de Hoffmann pode ser percebida nos mínimos detalhes, como, por
exemplo, em uma conversa que tive com ele, acerca dos “ganchos”, dos pontos de
partida para a escritura das estórias envolvendo o investigador de almas
Landblut. Hoffman é muito objetivo e cirúrgico em suas colocações: Quanto à história em si, foi até gozado. Eu
só tinha na cabeça uma ideia: quatro amigos, em torno de uma mesa, bebendo
chope. Um deles cai morto. Assassinado. Quem matou? A ideia veio-me uma noite,
eu sentado num bar daqui, da cidade, bebendo uma cerveja sozinho. Quatro amigos
meus estavam a uma mesa próxima, alegres, na cerveja também. De repente, a ideia
maluca dentro de mim: se um deles caísse morto, quem teria matado? Eis aí a
ideia inicial para O Homem e o Bar,
relatada a mim pelo artífice gaúcho. A partir dessa “cena” magistral, Hoffmann
nos lança em um intrincado mundo relacional repleto de aparências. Fantástico!
Todos veem o que aparentamos; poucos advertem o que somos. É com essa sentença certeira do vasto pensador Nicolau Maquiavel que o
filósofo/escritor Hoffmann inicia A
mulher do Neves, o último da trilogia. Como já advertira um crítico
literário do Rio Grande do Norte, as surpresas que nos irão prender à trama
muito têm a ver com essas palavras maquiavélicas! É interessante observar como
Landblut se relaciona com as pessoas do seu lugar, as quais, em meio a uma vida
banal, quase sempre têm mistérios a ocultar à luz do dia ─ como em O Terceiro Tiro! Portanto, tomemos
cuidado! Por trás de um semblante usual de alguém que se perde em afazeres
comezinhos, pode-se esconder a face de um assassino frio e cruel…
Impossível não fazer a associação entre ambos e
notar que tanto Hitchcock quanto Hoffmann, ao optarem pelo formato policial,
que aparentemente se traduz em um divertimento rápido e para consumo fácil, nas
entrelinhas de suas tramas, investigam a alma do ser humano e fazem profundas
observações acerca de nosso complexo tecido social, fazendo um cruzamento entre
a análise psicológica de personagens e um poderoso olhar agudo sociológico. Eis
o truque de mestre deles, cada um em seu território.
Encerro o texto corrigindo-me… Eu, bobalhão, falei
o tempo todo em trilogia… Trilogia que nada! Releio agora um e-mail que me fora
enviado há poucos dias pelo mestre, que me põe desconcertado! Nascido no final
da década de 30, o sempre jovial Nelson Hoffmann, de espírito inquieto,
prolífico e autor de dezenas de livros (entre eles o polêmico A bofetada), segue firme e forte e já
prepara o quarto livro da série, a ser lançado no próximo ano. Em breve, iremos
nos deparar com uma tetralogia das aventuras do detetive de Três Mártires. As
surpresas, pelo visto, não fazem parte somente do universo de Landblut.
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*Autor de O Silêncio das Sombras
postagem enviada por Nelson Hoffmann
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