JÁ QUE...
EMANUEL MEDEIROS VIEIRA
Já que não posso vê-lo mais, busco um livro que ele amava quando era pequeno,
É aqui que envelheço, lembrando de antigos abacateiros, pitangueiras e mangueiras.
Escrevo para quem sabe que vai morrer.
O que espero? Já escrevi tudo o que precisava?
Não, não contaria a ele sobre o câncer – a “tristeza das células”, segundo Jayme Ovalle.
Ele não merecia mais uma notícia ruim. Ruim? É da
humana lida. Saudades? Sim. Sentia muito. Soaria pomposo, faria
“filosofia” e não ficção se falasse em dessacralização do real, ou de
que nada mais importa, tudo se evapora, nada fica, mesmo
as palavras de um sábio caem no vazio? O pensamento profundo, como
pensava George Steiner, nasce de uma “necessidade de transcendência”. E
que transcendência há nesse mundo?
Ficção ou ensaio? Ensaio o ficção? Tudo misturado. Não são fáceis as palavras na velhice.
“O mundo, livre de Deus, foi sendo aos poucos dominado pelo diabo, pelo espírito do mal, pela crueldade”. (...)
Vejamos o universo à nossa volta, e aquele menino,
agora adolescente que eu não poderia ver. Um menino anônimo no meio do
culto pela fama, pelo prazer instantâneo, pelas “redes sociais” que
demonizam quem pensa diferente.
Pós- cultura, pós-verdade, e necessitamos de algo que já não sabemos definir.
Seria Deus na soleira da porta?
É a “sociedade do espetáculo”, como definiu Guy Debord.
Mas queria falar sobre o menino – quase-adolescente.
Que tanto amei.
Estou sentado em cima de fragmentos, de memórias, de guerras, de torturas, de pesadelos.
Eu sei e já disse: tudo é veloz, e é aqui que
envelheço. É um mundo apenas financeirizado, da hegemonia da competição,
e onde não sabemos mais distinguir o que é verdade do que é mentira.
Levara o menino em parques, circos, colhemos goiabas.
Nesse mundo – outros já o disseram – as coisas (mercadorias) passaram a ser os verdadeiros donos da vida.
Acabou o espetáculo e não falei sobre o menino...
“O espetáculo, afirma Debord, “é a ditadura efetiva
da ilusão na sociedade moderna” – lembrado por Vargas Lhosa em “A
Civilização do Espetáculo”.
Onde estão aqueles velhos domingos em que eu saía
com o menino? As categorias que falam em “otimismo” ou “pessimismo” não
entram na mente daquele que escreve visceralmente, por funda
necessidade. Os domingos? Nos porões da memória, E a
memória foi ficando a alma do humano – ou de que é humano para mim.
Eu sei, eu sei. Repito Terêncio: nada que é humano me é estranho.
Mas deste amor, menino, eu não abdico, até chegar à Terceira Margem do Rio. Menino.
(Salvador, fevereiro de 2017)
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