A QUESTÃO ORTOGRÁFICA
Venho-me
manifestando publicamente, desde 1991,* sobre o semivigente Acordo Ortográfico.
O adjetivo tem cabimento porque, em verdade, nem todos os países lusófonos
levaram a termo o processo de aprovação, a obrigatoriedade no Brasil foi
diferida para daqui a alguns anos (este artigo, a propósito, vai vazado na medida velha), as novas normas continuam
mal vistas em Portugal, e mesmo aqui a recepção de algumas das mais importantes
dentre elas tem sido nitidamente negativa. As divergências são tantas e tão significativas
que o que deveria ser de fato um Acordo acaba se tornando numa Questão
Ortográfica.
Não pretendia
voltar ao assunto. Nem reivindico nenhuma qualificação especial para dele
tratar. Penso, aliás, que a tanto se qualifica todo usuário pensante da regulamentação
ortográfica; e creio poder-me incluir nessa categoria, escritor e professor de
português que tenho sido desde a juventude. Se agora volto à carga é porque
aflorou recentemente, no Congresso Nacional, movimento para que se proceda a
uma revisão do Acordo, adotado oficialmente, na prática, até agora, apenas em
nosso país.
Argumenta-se em
sua defesa que as mudanças acordadas foram de pequena monta, afetando apenas
0,43% do vocabulário brasileiro (contra 1,42% do português); mas o problema não
é a extensão do mudar, é o mudar para pior... A base maior de minhas
discordâncias é a falta de lógica de algumas dessas mudanças. Não que tal
absolutamente inexistisse na regulação anterior; é que certos ilogismos se
agravam na atual. Nada prejudica tanto o aprendizado quanto a ilogicidade.
Lembre-se a tendência infantil a normalizar,
por exemplo, a conjugação de verbos irregulares... Não há muito a fazer, quando
se trata de “desvios” ou “sinuosidades” atribuíveis à tradição ou à índole do
idioma; em matéria ortográfica, em que o peso da convenção tem força, é
relativamente largo, porém, o horizonte das possibilidades. A norma ortográfica
havia de ser tão lógica quanto possível, e as exceções, reduzidas ao mínimo
inevitável. Perdeu-se a oportunidade de aplainar um pouco o terreno; pelo
contrário, acrescentaram-se-lhe acidentes; ao invés de simplificar, aqui e ali
se complicou.
Incongruências Acentuais
Aboliu-se o
acento agudo nos ditongos oi e ei para indicar vogais básicas abertas,
nas palavras paroxítonas. Uma pena,
porque esse diferencial gráfico vai fazer falta, vai haver confusões. Ele não
apenas distingue o som aberto do fechado, mas contrasta palavras homógrafas de
pronúncia e sentido diversos, como apoio/apóio,
leia/Léia. A justificação é a
existência de “oscilação em muitos casos entre o fechamento e a abertura na sua
articulação”. Ora, não seria mais lógico permitir continuasse cada país a
acentuar as palavras em que há essa oscilação conforme as pronuncia? Foi, mutatis mutandis, o que fez o legislador
ao permitir a persistência das grafias Antônio
e António, tênue e ténue, mais um
sem-número de outras.
Não contente, contudo, o legislador
ortográfico mantém o diferencial nas palavras oxítonas e monossilábicas. Assim,
temos agora herói, mas heroico, ambos de tônica aberta; comboio (verbo, ditongo aberto), mas bói (aportuguesamento do inglês boy), e assim por diante. Tem lógica?
Acentuações Duplas, Grafias Triplas...
Num documento
que se propõe unificar a grafia das palavras em todas as nações lusófonas,
chamam a atenção o número e a discricionariedade das exceções. Pode-se acentuar
amámos, para distinguir o presente do pretérito, ou manter amamos para ambos os tempos; grafar Davi ou David, Jacó ou Jacob, Jó ou Job (como únicas
exceções a uma regra foneticamente retrocessora), mas Josafat é sempre com t
final, ainda que entre nós o nome seja sempre dito Josafá; escrever buganvília, buganvílea ou
bougainvillea; rua Direita ao lado de Rua Direita, e por aí vai. Dá pra
entender?
Tremer ou Tremar?
Não há por que
tremer ante o espantalho do trema. É só um espantalho mesmo, em que os pássaros
sabidos pousam na paz de Deus. O trema tem função, e tem utilidade! Ao
contrário de embaraçar, como tantos afirmam, ele auxilia o leitor,
mostrando-lhe quando o u das
combinações gu e qu é pronunciado. Não há dificuldade na compreensão de seu emprego.
A dificuldade está, sim, na compreensão do emprego daquelas combinações; quem
não o aprendeu não saberá como usar o trema. Para quem escreve Portugual (tive concluintes do Curso
Normal que cometiam essa barbaridade!), o trema é realmente de quase impossível
entendimento. Então, qual o sentido de eliminá-lo? Sermos originais? O trema
continua existindo, com diferentes valores, no espanhol, no francês, no
italiano, no alemão... Não me consta que por aí estejam tramando aboli-lo.
Em breve
estaremos dizendo trankilo, tendência
que já existe, talvez devida a influência de nossos vizinhos de fala
castelhana. E quando o poeta quiser indicar que a palavra saudade, em determinado verso, deve ser pronunciada como um
tetrassílabo, isto é, com hiato e não com ditongo, que haverá de fazer? Eis aí
uma simplificação que complica.
Digressão Pitoresca
Não está nas
fundamentações do Acordo (embora as primeiras intenções fossem mais radicais,
no particular), mas tenho ouvido, de defensores da abolição do trema e dos
acentos, que eles seriam um obstáculo à difusão do português além das atuais
fronteiras lusófonas. Ora, não nos iludamos; os obstáculos são outros.
Aprende-se, quando convém, o grego, o russo, o búlgaro, que usam alfabetos não
latinos. Aprende-se o alemão, apesar de suas assustadoras palavras justapostas.
Aprende-se o chinês! o japonês! Aprende-se até o javanês de Lima Barreto... Nem
por sua graciosa letra eñe chega o
espanhol a assustar o estrangeiro. O francês, não obstante sua multidão de
agudos, graves e circunflexos, dominou o mundo. Cada idioma, vivo ou morto, é
um planeta no sistema lingüístico –se não um sistema à parte–, que é possível
conquistar. Em havendo motivação econômica (ou mesmo cultural,
minoritariamente), aprende-se até o marciano, que não existe...
O Bicho-Papão Chamado Hífen
Se o trema é um
falso problema, o hífen é de fato uma dificuldade notável, um verdadeiro
bicho-papão. O problema não foi resolvido; nem sei, admito, se isso era
possível, mas acho que foi de certo modo agravado. Concordo em que seja
desejável unificar certas normas, mas unificar por unificar não interessa. É
preciso fazê-lo pelo melhor padrão. E não creio que isso tenha ocorrido.
Até ontem,
dispensávamos o hífen em microonda e antiimperalismo sem nenhum pudor de
dobrar vogais. Havia hífen, contraditoriamente, em contra-almirante, para ficarmos num exemplo. Tenho dúvida quanto à
sabedoria da solução que manda botar o famigerado tracinho em todos esses
casos; não seria melhor o oposto? Alguém me aventa uma razão... estética. Mas
acaso ficou mais bonito contrassenso?
Até outro dia, pé-de-moleque levava hífen, se queríamos
o doce e não o apêndice locomotor do menino de rua. Tinha lógica distinguir
graficamente o nome do petisco da soma dos vocábulos que o compõem. Hoje só
cabe distinguir com a hifenização, dentre as palavras compostas “ligadas por
preposição ou qualquer outro elemento”, as que designam espécies da fauna ou da
flora. Assim, melão-de-são-caetano, andorinha-do-mar e bem-te-vi têm hífen; rabo de
arraia (golpe de capoeira), ouro de
gato (mica amarela), ouro de tolo
(pirita) não. Mas não é o mesmo tipo de composição? Mais uma vez a lógica foi ferida. Se se trata
de compostos por justaposição, sem nenhum elemento de ligação, mantém-se a
norma velha: boa-noite é com hífen,
seja cumprimento ou planta, e isso é correto, pois em ambos os casos há “unidade
sintagmática”. E o inferno do hífen fica mais quente com a mistura de
critérios.
Paro por aqui.
Não tinha nem tenho a pretensão de esgotar o assunto, apenas quis pinçar alguns
dos itens mais importantes, para dizer da conveniência e oportunidade da revisão
do Acordo. Nem se veja nisto menoscabo algum ao imenso trabalho dos ilustres
estudiosos que o prepararam; apenas insisto em que o resultado desse trabalho
não foi suficientemente discutido antes de nos ser imposto. E não é bom,
acrescento.
*
No extinto jornal brasiliense BsB, em
13 e 20.10.1991, no também extinto D.O.
Leitura, de São Paulo, em janeiro de 1993, no livro de Alan Viggiano Dossiê Grupo dos Sete: Os Povos e Países de
Língua Portuguesa (André Quicé, Brasília, 1994) e no Jornal da ANE, n.º
5, de nov.-2007, e n.º 32, de fev./mar.-2010. Na internet: Jornal da Besta Fubana (www.jornaldabestafubana.blogspot.com) e Nós – Fora dos Eixos (www.nosrevista.com.br), edições de 5.1.2010.
postagem enviada por Anderson Braga Horta
do livro DO QUE É FEITO O POETA
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