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UMA DISSENSÃO ATUAL * (DESACORDO ORTOGRÁFICO) - por Anderson Braga Horta



UMA DISSENSÃO ATUAL


Anderson Braga Horta


DESACORDO ORTOGRÁFICO

Após longa espera, devida à omissão da maior parte dos países signatários no que toca à sua ratificação, parece que estão agora em vias de entrar em vigor, efetivamente, as novas normas que passarão a reger nossa ortografia.
O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi assinado por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe em 1990. Em 1991, escrevi a respeito artigo intitulado “Ortografia: Acordos e Desacordos”, publicado no extinto jornal brasiliense BsB, em 13 e 20.10.1991, no também extinto D.O. Leitura, de São Paulo, em janeiro de 1993, e no livro de Alan Viggiano Dossiê Grupo dos Sete: Os Povos e Países de Língua Portuguesa (André Quicé, Brasília, 1994). Dizia então que “proposta desse vulto exigiria amplos e não apressados debates, o que, infelizmente, não aconteceu entre nós”. Exprobrava, assim, ter-se submetido ao Congresso Nacional “um trabalho não suficientemente meditado pela comunidade usuária em nosso país”, referindo-me, naturalmente, “à sua parte culta, da cultura específica necessária para opinar”, passando a formular as objeções que fazia –e faço– ao texto. Reproduzo-as, aqui, em parte e com as adaptações necessárias em razão da nova fase do processo de implantação do pacto.
 
Vá Lá o Acordo, com Reservas

As alterações no sistema vigente (sistemas, no plural, seria mais exato) visam antes à padronização que à simplificação. Haverá quem oponha a esse escopo o asserto de que a comunidade internacional lusofalante há de crescer e inter-relacionar-se melhor; os falares locais hão de interpenetrar-se, interinfluenciar-se mais e mais; a uniformização gráfica será, então, uma tendência natural. Aflora espontâneo o contra-argumento de que precisamos acelerar –se não mesmo viabilizar– o processo. Longe de mim, pois, contestar a conveniência, a necessidade, a oportunidade de instrumentalizar, com a padronização ortográfica, a concriação, a consolidação da grande Pátria transnacional da Língua Portuguesa.
Não seria este, porventura, o momento de ousar um passo além? Por que não resolver, por exemplo, agora e de uma vez por todas, os problemas perpetuados pela vestal multidesvirginada de um cambaleante etimologismo? Assim não se entendeu, ou não haveria concordância para tão largo passo. Mas, especulações à parte, voltemos aos fatos. E os fatos, hoje, são as normas acordadas.
Dentre estas –ainda bem!– foram excluídas algumas novidades inaceitáveis até por agressão à integridade fonética, assim as relativas ao emprego do hífen adiante registradas e a que interessa à acentuação dos vocábulos proparoxítonos, presentes na versão de 1986. A abolição do acento gráfico dos esdrúxulos, com a conseqüência que facilmente lhe podíamos prever, contribuiria para maior diferenciação dos falares do Português nas diversas nações lusófonas, que, tirante talvez Portugal, têm ainda um grande contingente de analfabetos e de semi-alfabetizados. Levaria a uma indesejável paroxitonização (ou desproparoxitonização), em muitos casos, e noutros, creio, ao fenômeno oposto. Penso que isso aconteceu, se bem que em pequena escala, numa época em que a população era muito menor e o ensino elitista, porém melhor. Nesta era de grande crescimento demográfico, de comunicação de massa e de ensino decadente...
Quanto ao hífen, desistiu-se de aboli-lo em compostos como bem-amado e inter-relacionar. Num e noutro capítulo, atendeu-se aos protestos que se levantaram, menos aqui do que no além-mar.
De algumas normas mantidas na proposta que resultou no Acordo de 1990 discordo por questão de gosto ou de tradição. Evitarei mencioná-las, para não cair no meramente pessoal, reconhecendo que a consenso não se chega sem parcela de renúncia. Mas outras me parecem claramente perniciosas, do ponto de vista do sistema. São elas o objeto, afinal, destas considerações, em que exponho, modestamente, as minhas reservas.

Das Salvas às Ressalvas

Sopitando, como disse, a manifestação de discordâncias que se possam ter por exclusiva ou predominantemente pessoais, limito-me, ou quase, a examinar dois itens do Anexo I do Acordo que –segundo meu julgamento– constituem aberrações, do ponto de vista da lógica e da conveniência prática. Examinemo-los pela ordem de sua ocorrência no texto.

I – Não-Acentuação de Ditongos Abertos

Diz o parágrafo 3.º da Base IX, referente à acentuação gráfica das palavras paroxítonas:

3.º) Não se acentuam graficamente os ditongos representados por ei e oi da sílaba tónica/tônica das palavras paroxítonas, dado que existe oscilação em muitos casos entre o fechamento e a abertura na sua articulação: assembleia, boleia, ideia, tal como aldeia, baleia, cadeia, cheia, meia; coreico, epopeico, onomatopeico, proteico; alcaloide, apoio (do verbo apoiar), tal como apoio (subst.), Azoia, boia, boina, comboio (subst.), tal como comboio, comboias, etc. (do verbo comboiar), dezoito, estroina, heroico, introito, jiboia, moina, paranoico, zoina.

Ora, é norma, adotada pelo Acordo, que os ditongos abertos cuja vogal-base seja e ou o recebam, nas palavras oxítonas, acento gráfico (Base VIII, 1.º, d), p.ex.: anéis, véus, herói. Aqui, a ausência de sinal é sinal; e, pois, a falta do diacrítico indica timbre fechado. A tendência natural, diante de vocábulos não correntes, há de ser a extensão do critério de distinção gráfica entre o ditongo aberto e o fechado; a não-acentuação gráfica do primeiro induzirá ao seu fechamento.
Pode-se ver que as razões contrárias a essa indistinção gráfica são, em boa parte, coincidentes com as que lograram afastar a abolição dos acentos gráficos nas proparoxítonas. O Anexo II –"Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990)"–, no item 5.3, enumera as últimas, sendo lastimável que não lhes notasse a proximidade com aquelas.

II – Banimento do Trema

Adotado o texto anterior, de 1986, amém e amem passariam à indistinção gráfica. Far-se-ia a diferenciação quando se julgasse necessário...
Que é pior, a norma rígida ou a ausência de norma? Esta, evidentemente, se temos bons motivos para prever que acarretará a perplexidade ou a indiferenciação fonética.
No Brasil, desde a Lei n.º 5.765, de 18 de dezembro de 1971, o emprego do trema se restringe às seqüências gu e qu antes de e ou i nas quais o u se pronuncia. Não há dificuldade nesse emprego, se se sabe o valor fonético daquelas seqüências no vocábulo; se não se sabe... bem, para isso existem os léxicos. O trema ajuda, não atrapalha. Sua abolição contribuirá, decerto, para não desejado "enxugamento" de um sem-número de vocábulos. Não acontecerá com palavras como lingüiça, decerto. Mas com outras como tranqüilo? Tranqüilamente...
Se o Acordo permite, v.g., amámos (pretérito perfeito do indicativo) por contraste com amamos (presente do indicativo), rua da Liberdade ou Rua da Liberdade, buganvília ao lado de buganvílea e bougainvillea (Bases IX, 4.º, XIX, 2.º, i, e I, 3.º, in fine, respectivamente), por que não facultar o uso do trema? Simplifica-se demais, de um lado; de outro, admitem-se tais filigranas.

Lana Caprina

Passo, encerrando, a duas questões menores.
A Base I, 5.º, mantém as consoantes finais b, c, d, g e t, “quer sejam mudas, quer proferidas, nas formas onomásticas em que o uso as consagrou”, integrando nessa regra “Cid, em que o d é sempre pronunciado; Madrid e Valhadolid, em que o d ora é pronunciado, ora não; e Calecut ou Calicut, em que o t se encontra nas mesmas condições". E excepciona: "Nada impede, entretanto, que dos antropónimos/antropônimos em apreço sejam usados sem a consoante final , Davi e Jacó."
Só três exceções. E teremos de grafar, contra a (nossa) evidência fonética e tradição gráfica, Josafat, com um t que nunca se profere?
Na Base IX, 2.º, a, registra-se para líquen um único plural, líquenes. No Brasil, esta forma é menos freqüente, predominando a forma liquens. Não precisaremos de mais que um exemplo, e vou colhê-lo, bem a propósito, no segundo quarteto de "Pátria", belo e conhecido soneto de Bilac:

Dos teus liquens, dos teus cipós, da tua fronde,
Do ninho que gorjeia em teu doce agasalho,
Do fruto a amadurar que em teu seio se esconde,
De ti, – rebento em luz e em cânticos me espalho!


O texto do Acordo vem acompanhado de uma errata referente ao Anexo II. O Anexo I –muito mais importante, pois contém a medula do Acordo– encerra mais numerosos erros (que, embora simples gralhas, ou lapsos de digitação, não deveriam passar em composição de tal natureza); mereceria também, e por maioria de razão, uma cuidadosa corrigenda. 

postagem enviada por Anderson Braga Horta
do livro DO QUE É FEITO O POETA

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