DIVAGAÇÕES (NEO)ORTOGRÁFICAS
Anderson Braga Horta
A criança, ao tempo em que
aprende a falar, assimila as estruturas da língua, isto é, depreende as leis internas que a regem. Não é questão
de memória meramente estática e sim do que poderíamos chamar de memória
dinâmica. Não é um processo de simples repetição, mas um processo de
compreensão. Assim, é comum ouvir-lhe, por exemplo, um “eu fazi”, no que se
revela coerente. Para “corrigi-la”, tem-se de convencê-la a usar a forma “fiz”,
que se lhe afigura absurda; ou –talvez mais adequado– de aguardar com paciência
que ela mesma deduza o desvio corrente.
Noutras palavras: assimiladas as leis,
ela as aplica de modo automático, de acordo com o padrão –eminentemente lógico–
que se formou em sua mente. O que é coerente, o que é lógico, ela o aprende,
ela o compreende, de um modo que podemos dizer natural; o que foge ao padrão, o
que foge à lógica lingüística, no caso, não se entende, memoriza-se.
Essas incoerências lingüísticas
constituem herança irrecusável. Formaram-se lentamente, através dos séculos, e
não há como impor-lhes retificação. Temos de conviver com elas. O campo da
ortografia é talvez o único em que podemos razoavelmente moldar o fenômeno
lingüístico, e exatamente porque não lhe é nuclear, exatamente porque é, de
certo modo, exterior a ele.
Noutra ordem de idéias, lembremos
que uma das dificuldades da língua é a generalização, que, todavia, é um de
seus fundamentos. Sem generalização não teríamos língua. A ortografia procura
às vezes ser específica, como no caso do emprego do hífen em “pé-de-moleque”
(Acordo de 43) e “copo-de-leite”, para indicar que as expressões têm, na
hipótese, o sentido de coisas individuadas, e não o sentido normal da
combinação dos respectivos vocábulos.
Vejamos como age o legislador de
90 em relação a essas duas questões.
Relativamente à generalização o
Acordo de 1990 procura dar-lhe algum antídoto tópico em normas para a grafia de
palavras compostas do tipo exemplificado. Comete dois pecados ao fazê-lo.
Primeiro, por excesso de especialização, distinguindo com os hifens apenas as
expressões relativas ao âmbito da fauna e da flora. Deste modo, “copo-de-leite”
e “coco-da-baía” (plantas) grafam-se com hífen, mas “pé de moleque” (doce) não.
Excesso de especialização, insista-se, pois não se lhe alcança a razão
essencial, ou prática, ou o que quer que seja, tornando-se a novidade em mais
um complicador de uma coisa já de si complicada: o emprego do hífen. Com isso,
ademais, introduz uma exceção inútil a uma regra de relativamente fácil
entendimento. A propósito (ou sem propósito) o Vocabulário nos manda grafar “copo-d’água” (pequena reunião
festiva) com hífen, numa exceção não prevista. Mas tanto nele quanto em novas
edições de dicionários vamos encontrar, lado a lado, os compostos “pé de
galinha” (rugas) e “pé-de-galinha” (planta). Se isso é simplificar, não sei
mais o que seria complicar. Não seria estranho se um professor de português
para estrangeiros bolasse um texto mais ou menos assim, para facilitar (?) o
desemaranhamento: “As moças usavam creme de pé-de-galinha para alisar pé de
galinha e tomavam sopa de pé de galinha para manter a forma.” O menino em mim
reclama, neste particular, uma norma única, não se arrepiando com o número de
hifens, três ou quatro que sejam. Aliás, o acordo também não se arrepia, visto
que grafa melão-de-são-caetano.
Como fica a função distintiva do
hífen em palavras que tais? Antes, era uma distinção significativa entre a
expressão constituída por uma palavra nuclear (copo, no caso) mais um séquito modificativo e o vocábulo composto
de “unidade sintagmática e semântica”, para usar a expressão do Acordo. Era
lógico. Agora, a distinção opera apenas para “palavras compostas que designam
espécies botânicas e zoológicas, estejam ou não ligadas por preposição ou
qualquer outro elemento”. Parece que ao normatizador repugnou misturar na mesma
bacia pé de moleque e copo-de-leite...
(A propósito, acho equivocada a inclusão de “ao deus-dará” e “à queima-roupa”
entre as exceções à regra. São categorias diversas, não?)
Outras regras do hífen têm
fundamento igualmente frágil. Sob 1943 escrevíamos antiimperialista sem vacilar. Hoje se arbitra que o tracinho deve
ser usado, para separar as vogais idênticas. Mas o encontro de vogais idênticas
continua normal na língua escrita (nem poderia deixar de sê-lo) em palavras
como voo, leem, graal. Novamente se
complica o que supostamente se tentara simplificar. (Supostamente, digo, porque
havia a contradição de infra-assinado
e quejandos.)
Na “Nota Explicativa do Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa” (Anexo II), item 5.3, b, aduz-se como
argumento para a manutenção do acento gráfico nas proparoxítonas “a eventual
influência da língua escrita sobre a língua oral, com a possibilidade de, sem
acentos gráficos, se intensificar a tendência para a paroxitonia, ou seja,
deslocação do acento tónico da antepenúltima para a penúltima sílaba, lugar
mais frequente de colocação do acento tônico em português” (assim mesmo, com tó e tô).
Fenômeno que tal, mutatis mutandis,
terá ocorrido com o dissílabo “ônix”, que em certa época se pronunciou oxítono,
como no alexandrino de Bilac “De ouro, púrpura, onix, sedas e especiarias” (As Viagens, “II – Os Fenícios”). O mesmo argumento deveria servir para
manter-se o acento distintivo nos ditongos abertos éi e ói. O critério da
indiferenciação privilegia uma das oposições ortoépicas observáveis em palavras
como leia e Léia, veio e véio (forma popular de velho), aboio e abóio, em
desarmonia com o adotado para as palavras oxítonas com esses ditongos; e assim
temos geleia e réis, heroico e herói, o que me parece um contra-senso.
Também neste caso mudamos para pior.
Contrastando com a violência
dessa norma, vemos a lenidade da Base IX, item 4.º, que faculta acentuar formas
verbais como amámos e louvámos, do pretérito, para as
distinguir das correspondentes do presente do indicativo.
Nesse capítulo
da acentuação gráfica, há problemas de difícil solução, como certos casos de vogais
tônicas i e u em oxítonas e paroxítonas. As contidas na Base X não me parecem
muito felizes, mas isso parece refletir tão-só (com hífen, por favor!) a
complexidade da questão. Por outro lado, indiscutível acerto é a prescindência
(Base IX, 7.º) do circunflexo em vocábulos como leem e voo, já
inexistente em Portugal. A justificativa do uso do sinal (“por clareza gráfica”
– Instruções para a Organização do
Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguêsa – 1943, item XII, regra 7.ª,
observação 3.ª, mais a regra 10.ª) chegava a ser pitoresca. Se quiséssemos
extremos de clareza gráfica não teríamos cortado drasticamente os diferenciais,
ou talvez fôssemos tentados a acentuar graficamente todos os ditongos de base ê e ô;
ou, ao contrário, todos os de base é ou
ó. (Solução radical seria acentuar
graficamente todos os ee e oo tônicos, ainda quando base de
ditongo.)
Chegou a vez do trema,
simplesmente abolido nas palavras portuguesas. Não quero repetir coisas que
tenho dito a respeito, vou-me limitar a dois pontos. Sua supressão, segundo a Nota Explicativa, é para “eliminar mais
um fator que perturba a unificação da ortografia portuguesa”. Ora, à unificação
interessaria tanto a exclusão quanto a mantença... Há quem diga que o emprego
do trema é difícil. Sê-lo-á mais que o do hífen? Será mais difícil que a
concordância? O acento gráfico nas proparoxítonas nem sempre foi regra em nossa
língua? Não fazia falta? Alguma há de ter feito; ao menos uma que outra palavra
teve a acentuação modificada pela falta do sinal. E o novo Acordo o manteve.
(Ah! o trema vai fazer falta!)
A verdade é que poderíamos
eliminar a acentuação gráfica (e o hífen) sem que por isso a leitura do
português se tornasse impossível. O italiano praticamente o faz. Não o fizemos,
o que demonstra que não queremos a simplificação pura e simples. Mudando o
foco: outras línguas usam o trema, e ninguém deixa de estudá-las por isso. No
alemão e no francês tem funções diversas, mas no espanhol tem-nas como no
português (ambigüedad, por exemplo).
Só pra insinuar que a justificativa das mudanças tem escassa aceitabilidade...
Para terminar: penso que
deveríamos manter o diferencial em homógrafos como fora/fôra, para/pára,
sede/sêde. Sem eles, muita vez, a leitura perde fluência.
Por essas e outras, passarei a
seguir apenas parcialmente o novo edito.
Brasília, janeiro de 2016
postagem enviada por Anderson Braga Horta
do livro DO QUE É FEITO O POETA
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