Depois das liberdades versíficas conquistadas ou difundidas pelo Modernismo, inúmeros candidatos a poeta abandonaram o fardo dos estudos métricos ou lhe passam ao largo, convencidos de que a métrica tradicional é uma prisão e uma inutilidade. Do metro na fôrma do soneto, então, nem falar. Chamam o soneto de cárcere do pensamento e da emoção, que seriam violentados para entrar na caixa estreita dos quatorze versos. É pena. Privam-se de uma gramática, privam-se de uma escola, privam-se de uma valiosa disciplina, que poderiam quebrar ou amoldar na feitura efetiva de seus próprios versos, mas lhes teria possibilitado um domínio da forma. Nem imaginam que o metro, com a prática, torna-se de adjetivo em substantivo na oficina do poeta. (confira este e outros poemas abaixo)
O NOVO
METRO DE VIEIRA VIVO
Ora, a linha medida de Vieira Vivo é de
elaboração muito mais penosa que o verso (que ele, de resto, sabe fazer). O
metro tem no ritmo, que no caso do tradicionalismo
clássico-romântico-parnaso-simbolista é reforçado e muito bem marcado pelos
ictos fixos, um adjutório poderoso, uma poderosa mnemônica. O novo verso por
ele proposto não atende ao ouvido. Atende unicamente à vista, e tem de ser
mecanicamente delimitado. Consiste em linhas de dimensões exatamente iguais,
compostas por palavras e os espaços naturais
entre elas. As palavras não podem ser espremidas nem os espaços aumentados
para ajuste. As linhas têm de ser construídas tijolo por tijolo, isto é, toque
por toque. O que é extremamente difícil, sem o suporte isorrítmico.
E o ritmo,
onde fica? Eis aí uma grande dificuldade adicional. Se nem a boa prosa o
dispensa, a linha não deve ser
arrítmica. O ritmo, o poeta há de forjá-lo, sim, linha
por linha.
Neste
livro, composto exclusivamente de sonetos, o autor emprega essa invenção sua
(datada de 1972, conforme esclarece), que, à falta de melhor denominação, chamo
de linha medida. Esse soneto de linhas iguais, batiza-o de “milhoneto”,
explicando: “O nome é uma corruptela de ‘soneto
cata-milho’, expressão irônica para identificar um datilógrafo de pouca
técnica. A elaboração tem como objetivo construir um corpo poético quadrado ou
retangular, à guisa de moldura plena, onde a ação do soneto se desenrola
....” A isostiquia –se me permitem o
palavrão– era mecanicamente exeqüível com a máquina de escrever, diz o poeta. E
com a linotipo, creio que posso acrescentar. No computador, tornou-se
impraticável, já que, em sua tipologia, as letras não ocupam espaços de identica
extensão. O autor esperou pelo advento da fonte Courier New, que, nesse particular,
se comporta como as tradicionais máquinas de escrever, para publicar seus
poemas nessa nova medida.
Ao tomar
conhecimento da criação linear de Vieira Vivo, uma luzinha se me acendeu na
memória. O notável ensaísta Ronaldes de Melo e Souza, que estreou em 1978 com o
belo Ficção e Verdade: Diálogo e Catarse
em Grande Sertão, Veredas (Clube de Poesia de Brasília), por essa época me
mostrou um caderno de poemas nessa modalidade métrica; mas parece-me que
abandonou por inteiro o projeto para se dedicar ao ensaio, como o tem feito
brilhantemente. Não tenho notícia de mais nenhuma iniciativa semelhante. Assim,
caberá a Vieira Vivo a primazia na espécie.
Lembro-me
também –e vai isto aqui apenas como curiosidade– de que por duas vezes apelei,
em minha poesia, para o recurso da composição quadrangular: no fragmento “V –
Notícia”, de “A Morte do Homem”, para evocar um tipo de noticiário em estilo TelePrompTer muito usado, na época, em
amplos espaços urbanos; e na parte VI do poema “Fragmentos da Paixão”, para obter
um efeito figurativo. Preparei-o na máquina de escrever (ainda assim, usando o
macete da manipulação de espaços), mas, ao tentar passá-lo para o computador,
as figuras se desfizeram... Acabei conseguindo-o, a duras penas, provavelmente
com ajuda especializada. De qualquer maneira, não se tratava da presente linha medida, mas tão-somente de
composição em bloco retangular.
A poesia
de Vieira Vivo tem méritos que independem desta novidade formal. Mas esta é a
novidade deste livro.
A leitura
desses sonetos rigorosamente isósticos não é tão fácil quanto a dos
tradicionais, até pela novidade. E a essas dificuldades próprias acrescenta
Vieira Vivo um vocabulário requintado, uma sintaxe por vezes nebulosa. Além
disso, elimina a pontuação em fim de linha, excepcionando apenas o sinal de
interrogação. Nada é gratuito: quer o autor encarecer a pesquisa indispensável
“para seguir tecendo o texto com o mesmo ofício minucioso de um artesão”, e
“resgatar o hábito da utilização do dicionário como ferramenta fundamental para
a concepção dos versos”. A temática é
lírica ou social. Há algumas homenagens literárias, e marcam presença figuras
da mitologia grega.
Vamos,
pois, à nova forma poética introduzida por Vieira Vivo.
Anderson Braga Horta
poeta, ensaísta e contista
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