Impressionavam-me os olhos
despetalados, arroxeados de Cristo na Paixão...O sangue a
escorrer, o brilho
divino semiescondido pelas pálpebras pesadas de cansaço e sofrimento... Olhava
os quadros da Via Sacra e sentia, literalmente, meu coração partir-se (os
cientistas já provaram que o coração pode ter fissuras causadas por dores
morais, espirituais, sentimentais)...
foto Cláudia Brino |
Quando eu morava em Bicas do
Meio (cidadezinha hoje chamada Wenceslau Brás) e estudava em Itajubá, sul de
Minas Gerais, no colégio Sagrado Coração de Jesus, recebia das freirinhas
aqueles ensinamentos sobre a redenção da Humanidade por esse sacrifício - e
tudo devia se repetir, alegoricamente, na Semana Santa, embora, para que as
pessoas não se esquecessem da verdade incontestável: "Ele morreu por
nós"...
Crenças à parte, nas relembranças
desta quaresma , vejo as ruas da cidade (chamada hoje Itajubá - Tecnópolis)
bordadas com pétalas e folhas - serragem colorida, às vezes, como se usa em
certas cidades mineiras, mas lá, eram mais flores que tudo mais...Artistas
anônimos, na sua maioria, desenhavam símbolos sacros, rostos de Jesus, de
Maria,de anjinhos... uma lindeza. Dava-me pena pisar toda aquela arte e
artesanato, na procissão. Vestíamos, as alunas, o lindo uniforme de gala, com
mangas compridas e meias três-quartos e lá nos íamos, a cantar hinos e desfiar
o rosário...
Foi então que a paixão irrompeu-me no
peito. O rapaz era nissei, irmão de uma colega de sala, e ele seguia, por fora,
como bom descendente de orientais, com sua máquina fotográfica, a registrar
meus passos. Eu levantava os olhos, sob o véu de cassa e lá estava ele,
encarapitado em muros, posicionando-se em degraus, torcendo-se pelo melhor
ângulo. Foi por essa época, que a sacralidade da Páscoa se diluiu, pois ela
significava agora chance de flertar com o moço Mikio... Mais tarde tivemos
muitos episódios encantadores, trocamos muitas cartas, mas ele tinha uma
prometida e tudo era muito platônico...
Anos mais tarde, em Juiz de Fora, eu
desenhava centenas de faces de Cristo, para vender, para capa de trabalhos, e
numa ocasião, para Madalena, uma colega do INAMPS que trabalhava na
Dermatologia. Talvez pela força do nome, dizia-me das suas intimidades com Ele,
a quem chamava " O MEU Jesus"... Todos os meus desenhos eram colados
por ela na porta do seu armário, por dentro, por fora, outros levava para casa,
uns queria para presentear. Certa feita, desenhei uma face sofrida do redentor,
para ela levar ao então senador Itamar Franco, que mandara para sua casa
material necessário à construção de uma gruta onde a figura de Cristo seria
devidamente reverenciada...
No final do curso de normalista, o
Colégio dos santos Anjos fez a exposição anual -e além do material didático que
criei, participei com um Cristo em Mil Cores- um desenho sobre papel camurça
preto ... Muitas faces desse Jesus sofrido, feições vindas do meu imaginário de
artista...
Talvez nem tanto: muitas das vezes,
ouvi das pessoas a observação: "Esse seu Jesus tem uns olhos amendoados,
como de japonês..." Passei a prestar atenção às espirais do inconsciente e
a abrir, em sã consciência, bastante, os olhos pisados do homem-Deus... Somente
assim, a face de Cristo deixou de parecer aquele nisseizinho lindo de minha
adolescência...
(*) Esta croniqueta foi escrita em Juiz de
Fora,muitos anos depois..
E depois, em 202, na Revista varal do Brasil,
editada por Jacqueline Bulos Aisenman.
postagem enviada pela autora
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